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terça-feira, 2 de abril de 2024

 


Conto de Fabio Shiva

 

Para Axel e Leonardo

 

Alauner é um habitante de outro mundo. Sua aparência é humana, de modo geral, mas há significativas diferenças entre a sua fisiologia e a nossa. Seus olhos estão sempre ardendo e lacrimejando e a sua cabeça dói devido ao pronunciado abaulamento do crânio, que lhe comprime o cérebro. Alauner também sofre de constantes dores nas costas e nos nervos, por conta do formato distorcido de sua coluna vertebral, que é encimada por uma impressionante corcunda.

Outras pessoas possuem condições diferentes. Um vizinho de Alauner, por exemplo, traz um rombo no peito, de onde vira e mexe algum órgão escapole e cai no chão. Em decorrência disso, o homem já está acostumado a se agachar a cada cinco passos para resgatar o coração ou um pulmão na calçada.

Apesar dessa diversidade, há algumas características comuns a todos os habitantes do planeta. Por lá ninguém tem ânus. O aparelho digestivo dá uma volta sobre si mesmo, fazendo com que os alimentos, depois de terem sido transformados em fezes, sejam excretados pela boca.

Tantas diferenças fisiológicas determinam que a sociedade de lá também seja muito distinta da nossa. Para citar um único exemplo, os livros apresentam as palavras em constante movimento, sem que jamais se forme uma só frase que faça sentido.

Certa noite, Alauner sonhou com o nosso mundo. Na manhã seguinte, muito impressionado, ele contou à esposa:

– Os livros de lá trazem textos fixos, com histórias e ensinamentos, iludindo o povo a confiar neles. As pessoas possuem um trato gastrointestinal deformado, que não lhes permite dar o devido valor aos alimentos e nem constatar diariamente que toda matéria está fadada à corrupção. Além disso, os habitantes desse planeta só apresentam dores e achaques quando estão velhos e doentes. Isso faz com que as pessoas se identifiquem fortemente com seus corpos, e raras são as que buscam alguma esperança de felicidade para além da prisão da carne.

Essas e outras coisas disse Alauner, enquanto sua esposa ouvia em horrorizado silêncio. Por fim ele suspirou, concluindo:

– Sonhei com o mundo onde a vida deu errado.

 

***

O conto “O mundo onde a vida deu errado” foi selecionado no Prêmio de Literatura Unifor e publicado na antologia lançada pela Universidade de Fortaleza (março de 2024).




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