Resenha do
livro “MARCELO, MARMELO, MARTELO”, de Ruth Rocha
Peguei esse
livro para ler com a intenção deliberada de responder a essa pergunta: o que
torna um livro infantil bom (ou mau)? Já conhecia a fama de Ruth Rocha como
excelente contadora de histórias para crianças, e esse livro em especial,
“Marcelo, marmelo, martelo”, com seu título lúdico e instigante, despertou a
minha curiosidade. Então mergulhei na leitura já sabendo de antemão que iria
encontrar um bom exemplo de literatura infantil. Restava descobrir o que
exatamente é que faz as crianças (e os adultos) gostarem desse livro.
O primeiro
ponto salta aos olhos, literalmente: um bom livro infantil deve ter boas
ilustrações. Por boas ilustrações, entendo que devam ser atrativas e,
principalmente, possuir “personalidade”. Há desenhos tecnicamente muito bem
feitos, mas que carecem desse componente essencial e difícil de definir: o carisma.
Esse é ainda o caso, penso eu, de muitas ilustrações geradas por IA
(provavelmente algo que será aprimorado em um futuro próximo). Aqui, em “Marcelo,
marmelo, martelo”, temos nos desenhos de Mariana Massarani um perfeito exemplo
do que devem ser ilustrações para um livro infantil: bem coloridas, muito
expressivas e divertidas e esbanjando o estilo pessoal da ilustradora,
facilmente reconhecível.
Uma segunda
característica importante é a linguagem, que deve ser dosada na medida certa,
para estimular a curiosidade e o aprendizado da criança de forma divertida. Uma
linguagem muito rasa ou infantilizada torna a leitura inócua e tediosa, mas um
vocabulário muito rebuscado pode deixar a leitura proibitiva ou mesmo
inacessível para a criança. Percebo essa barreira da linguagem especialmente em
obras publicadas há trinta anos ou mais, lamento dizer, por conta da redução do
vocabulário que vem ocorrendo de lá para cá. Um triste exemplo é o da
sensacional Coleção Vagalume, que comecei a devorar aos 8 anos de idade (e que
continuo lendo até hoje): muitos desses livros maravilhosos, temo, não seriam apreciados
pelas crianças de hoje, por conta do vocabulário utilizado.
A terceira
característica é a história em si que está sendo contada, a trama, o enredo. É preciso
que a história apresente um problema que interesse à criança, e que esse problema
seja adequadamente resolvido no decorrer da história. E nesse sentido a trama
de “Marcelo, marmelo, martelo” só poderia ser chamada de exemplar: a curiosidade
natural do menino Marcelo o leva a questionar o nome das coisas: por que ele se
chama “Marcelo”, e não “martelo” ou “marmelo”? Isso leva a situações engraçadas
e também potencialmente perigosas quando Marcelo decide chamar as coisas pelo
nome que ele mesmo escolher, e não pelo nome adotado pela convenção. E o clímax
acontece quando o menino pede ajuda para uma situação de emergência: “Papai,
papai, embrasou a moradeira do Latildo!” A demora de seus pais entenderem o que
ele quer dizer (e tomarem as providências para apagar o incêndio na casinha do
cachorro) faz Marcelo perceber a importância da comunicação, que implica em
utilizar um código comum para a compreensão da mensagem trocada entre emissor e
receptor. Uma verdadeira aula de Teoria da Comunicação, apresentada de forma
simples, direta e engraçadíssima! Irresistível para crianças de todas as
idades.
Por fim, a
quarta e talvez principal característica, em minha opinião, é o que pode ser
chamado de “voz de criança”. Com essa expressão quero dar testemunho de que as
melhores histórias infantis que li (com destaque para “O Menino Maluquinho” de
Ziraldo) não são histórias contadas por um adulto, nem mesmo por um adulto
fingindo ser uma criança. Nas histórias infantis realmente maravilhosas e
fascinantes, o autor consegue de algum modo acessar a sua criança interior, e é
essa criança que conta a história. Para demonstrar o que quero dizer com “voz
de criança”, vou utilizar como exemplo um experimento psicológico com pessoas
hipnotizadas que passaram pela chamada “regressão de idade”. Nesse experimento
foram constatadas diversas inconsistências entre o comportamento de adultos
regredidos pela hipnose à condição de crianças e o de crianças verdadeiras. Uma
dessas inconsistências: o adulto regredido está brincando com as mãos na terra,
quando alguém lhe oferece um bombom. Sem hesitar, ele pega o doce com as mãos
sujas e o enfia na boca. Já uma criança de verdade, na mesma situação, limpa as
mãos na camisa antes de pegar o doce... Ou seja, não basta imaginar o que uma
criança faria ou diria, é preciso ser uma criança ao contar uma história
para crianças. Não sei se consigo explicar melhor que isso, mas acho que nem é
preciso: essa é uma daquelas doces verdades que “não há ninguém que explique e ninguém que
não entenda”. E nesse quesito, mais uma vez, palmas para Ruth Rocha!

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Fabio
Shiva é músico, escritor e produtor
cultural. Fundador da banda Imago Mortis. Coautor e roteirista de ANUNNAKI -
Mensageiros do Vento, primeira ópera rock em desenho animado produzida no
Brasil. Publicou livros de gêneros diversos: romance policial, ficção
especulativa, contos, crônicas, infantojuvenil e poesia, além de várias
antologias poéticas como organizador. Ghost Writer com seis livros
publicados. Idealizador e proponente de diversos projetos aprovados em editais
públicos, como Oficina de Muita Música!, Gaia Canta Paz, Pé de Poesia, Doce
Poesia Doce, Poesia de Botão, Gincana da Poesia e P.U.L.A. (Passe Um Livro
Adiante). Autor convidado na Bienal do
Livro Bahia 2022 e da FLIPO Castro Alves 2025. Desde 2023 atua à frente da
Natesha Editora.
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