quinta-feira, 24 de novembro de 2022

UM APAIXONADO TANGO ARGENTINO EM LOUVOR À BOA LITERATURA

 


Resenha do livro “HISTÓRIAS DE AMOR”, de Adolfo Bioy Casares

Há muito tempo que eu tinha grande curiosidade para ler algo de Adolfo Bioy Casares. Ele foi, afinal, parceiro de criação de ninguém menos que Jorge Luís Borges, com quem escreveu uma série de contos de literatura fantástica. Por isso, quando encontrei essas “Histórias de Amor” na estante do Cantinho dos Livros (espaço para doação de livros no segundo andar do Mercado Municipal de Itapuã), comecei a ler no mesmo dia. E amei cada página!

O livro começa com dois contos que trazem esses títulos pra lá de clichê: “Todos os homens são iguais” e “Todas as mulheres são iguais”. Contudo ao mergulhar na leitura logo descobrimos que nada há de clichê na prosa elegante, irônica e surpreendente de Casares. Atrevo-me a dizer que seja qual for a expectativa do leitor ao se deparar com esses dois títulos, essa expectativa será agradavelmente superada.

Mas foi a partir da terceira história, “Reverdecer”, que Adolfo Bioy Casares me pegou de jeito. O conto começa com essa magnífica frase de abertura, que entrega todo um buquê de nuances e significados em tão poucas palavras habilmente articuladas:

“Continuava olhando o sepulcro, porque estava resolvido a não sair até que se afastassem as irmãs da pobre Emília e porque no instante em que se voltasse para sair do cemitério entraria no mundo em que não poderia mais encontrá-la.”

E a história que se segue me levou às lágrimas ao final. Não tanto pela história em si, mas pela habilidade com que foi contada. Chorei de emoção pelo deleite estético de estar diante de uma autêntica pérola da Literatura mundial.

À medida que fui lendo, fui colecionando algumas das tiradas de Casares, que revelam a arguta inteligência de um observador atento e bem-humorado:

“O amor é como no cinema: ao sair da sala a gente já está mudada.”

“Embora vivam juntos, os pais e os filhos, o homem e a mulher, não sabem que toda comunicação é ilusória e que, definitivamente, cada qual permanece isolado em seu mistério?”

“O leitor que tenha aturado temporadas em cidades distantes terá descoberto, como eu, que a solidão, com seu interminável monólogo interior e o rosário de nímias decisões – agora faço isso, agora aquilo – perigosamente se parece à loucura.”

“Se nos olham muito, a gente se sente tocada. Embora os tratadistas não a mencionem, há uma sensibilidade sutil, mas indiscutível, que nos avisa quando nos olham.”

“(…) até cair de velhos levamos dentro um adolescente sentimental.”

“A mente humana, máquina bastante simples, trabalha com poucas ideias.”

Achei especialmente marcante essa passagem, que sintetiza e antecipa uma das “sete leis espirituais do sucesso” preconizadas por Deepak Chopra, a Lei do Distanciamento:

“Acho que uma pessoa deve edificar sua casinha e fazer a cama na incerteza. Em resumo, não há nada seguro nesta vida.”

Encontramos uma variação desse mesmo pensamento em outro trecho:

Ingrata, dura, pérfida são palavras que naturalmente a consideração da vida evoca, mas por sorte a série de epítetos apropriados inclui também inesperada.”

Casares dá a impressão de ter, como outros grandes escritores, alguns temas favoritos que ele vai retomando e abordando de várias formas em várias histórias. A figura de uma certa Emília como mulher inesquecível e inigualável, por exemplo, aparece no já mencionado conto “Reverdecer” e também em “Carta sobre Emília”, deixando o leitor na dúvida sobre se se trata ou não da mesma pessoa. E em outro conto temos essa frase lapidar:

“(…) a mulher é o homem e o homem é o menino.”

Que é como que desenvolvida e explicada em outro conto:

“Tantas vezes isso me aconteceu com as mulheres! Como se realmente possuísse uma maior sabedoria sobre o essencial da vida, quando pensamos que só um milagre nos mostraria as coisas sob outra luz, as mulheres com naturalidade operam o milagre, dão razões que reconhecemos como verdadeiras, razões que anulam as nossas, que nos deixam à altura de meninos teóricos, um pouco estúpidos, porque falam do que não sabem.”

Uma das histórias mais interessantes é “Ad Porcos”, que traz muitas passagens deliciosas:

“Descrevia-me como se me conhecesse; infelizmente, porém, o tom era depreciativo.”

“Vissem vocês como me chateei. Mas só por dentro, já que por fora impecavelmente mantive o largo sorriso que me saía torcido na boca.”

“Aprendi a contar a história sem omitir no processo a melancólica espiada sobre nossas debilidades humanas ou a nota zombadora.”

“Está claro que o rosarino padecia da incurável mesquinharia dos mestres ou dos que se crêem mestres: não tolerava a eventual lição de um leigo sem acrescentar, para salvar as aparências, uma objeção de detalhe.”

“Em tempos de ditadura, a população inteira fica um pouco ridícula, como obedientes escolares, respeitosos da régua da professora.”

“O medo não é tolo, mas é triste.”


Creio ser meio inevitável a comparação com Jorge Luís Borges. Ainda não li essas obras escritas junto com Casares, mas comparando os textos de Borges que li com essas “Histórias de Amor”, a impressão que tive foi a de que Borges é mais “universal”, enquanto Casares é mais “argentino”. Não há nessa percepção nenhum demérito para Casares, e é provável que eu tenha percebido dessa forma por estar comparando um único livro temático de Casares (contos versando sobre o amor) com os vários textos de Borges que li duas ou três vezes cada (e sempre com vontade de ler novamente). Seja como for, uma imagem musical talvez dê conta de expressar essa diferença que percebi entre os dois autores: enquanto os textos de Borges me sugerem melodias alienígenas de mundos imaginários, a trilha sonora dessas “Histórias de Amor” é, certamente, um bela sequência de tangos argentinos.


 

  

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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).

 

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