Resenha do livro “O
QUE É LUGAR DE FALA?”, de Djamila Ribeiro
Essa foi mais uma leitura preciosa a que tive acesso graças a meu irmão de Poesia e Capoeira, Tanderson Gangoji. Gratidão, camaradinha!
Penso que não é exagero dizer que a questão do lugar de fala está no “olho do furacão” das tensões, conflitos e polarizações que estão agitando o Brasil e o mundo. Pois pensar o lugar de fala nos remete inevitavelmente às pautas identitárias que estão no cerne do ódio e da intolerância que tanto adoecem a nossa humanidade. Cada vez mais fica evidente (assim espero) que a ignorância que gera racismo, machismo, homofobia, intolerância religiosa etc. é a grande força propulsora de movimentos trevosos como nazismo, fascismo, bolsonarismo. O que ainda não é tão evidente, mas começa a aparecer cada vez mais (assim espero), é que “não se combatem monstros tornando-se um deles”, ou seja, não se pode usar trevas para acabar com as trevas. Só se pode combater as trevas com a luz.
Por sincronicidade, eu estava terminando de ler esse pequeno grande livro de Djamila Ribeiro, “O Que É Lugar de Fala?”, quando recebi de um amigo essas reflexões polêmicas e muito bem articuladas de Pedro Dória, editor do Meio, sobre como “a esquerda identitária elegeu direita radical” no Chile (https://youtu.be/Lvvgz19BJOI). Uma das falas desse vídeo, em especial, toca no âmago dessa contradição: “Não tem como dar certo um movimento político que dá medo em quem simpatiza”, diz Pedro Dória, referindo-se ao “medo do cancelamento” que faz as pessoas evitarem sequer falar sobre temas sensíveis... como o lugar de fala.
Esse vídeo, conjugado com a leitura da Djamila Ribeiro, me fez pensar um bocado. A princípio concordei com todos os argumentos apresentados pelo Pedro Dória, mas então esbarrei no óbvio: vivemos (especialmente no Brasil) em uma sociedade injusta e desigual, construída a partir de privilégios de um lado e opressão do outro. A maioria das pessoas sequer chega a tomar consciência desses privilégios e dessa opressão. Então em que medida é lícito e justo pedir que as pessoas que se conscientizam dessa opressão e desse privilégio tenham a paciência de esperar que os inconscientes sejam “convencidos” da necessidade de redefinir os valores e a estrutura da sociedade? Talvez algum cínico ainda queira acrescentar: que esperem sentados...
Ao pensar no lugar de fala e nas pautas identitárias, só tenho duas convicções: 1) essas pautas são justas, necessárias, urgentes e 2) o conceito do lugar de fala pode ser uma boa ferramenta de conscientização a respeito dessa justiça, necessidade e urgência. O resto (graças a Deus) são dúvidas, indagações, questionamentos. Sobretudo nesse momento de exacerbação e até idolatria ao ódio, devemos nos acautelar contra pessoas que têm certeza de tudo.
Especificamente sobre o livro “O Que É Lugar de Fala?”, recomendo muito a leitura, que ajuda a desfazer tantos equívocos que cercam o tema. Anotei alguns dos trechos mais marcantes, que compartilho a seguir.
“Se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível.”
“Segundo o Mapa da Violência de 2015, aumentou em 54,8% o assassinato de mulheres negras ao passo que o de mulheres brancas diminuiu em 9,6%. Esse aumento alarmante nos mostra a falta de um olhar étnico racial no momento de se pensar políticas de enfrentamento à violência contra a mulher.”
“A pensadora e
feminista negra Lélia Gonzalez (...) criticava a hierarquização de saberes como
produto da classificação racial da população. Ou seja, reconhecendo a equação:
quem possuiu o privilégio social possui o privilégio epistêmico, uma vez que o
modelo valorizado e universal de ciência é branco. A consequência dessa
hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica eurocêntrica
conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria
conhecimento válido, estruturando-o como dominante e, assim, inviabilizando
outras experiências do conhecimento. Segundo a autora, o racismo se constituiu
‘como a ‘ciência’ da superioridade eurocristã (branca e patriarcal)’.”
“(...) a linguagem dominante pode ser utilizada como forma de manutenção de poder, uma vez que exclui indivíduos que foram apartados das oportunidades de um sistema educacional justo. (...) Gonzalez refletiu sobre o modo pelo qual as pessoas que falavam ‘errado’ dentro do que entendemos por norma culta, eram tratadas com desdém e condescendência e nomeou como ‘pretoguês’ a valorização da linguagem falada pelos povos negros africanos escravizados no Brasil.”
Sobre movimentos identitários:
“(...) o objetivo principal ao confrontarmos a norma não é meramente falar de identidades, mas desvelar o uso que as instituições fazem das identidades para oprimir ou privilegiar. (...) Logo, não é uma política reducionista, mas atenta-se para o fato de que as desigualdades são criadas pelo modo como o poder articula essas identidades; são resultantes de uma estrutura de opressão que privilegia certos grupos em detrimento de outros.”
Ideia que gera resistência e que...
“faz com que
pessoas brancas, por exemplo, ainda insistam no argumento de que somente elas
pensam na coletividade (...). Ao persistirem na ideia de que são universais e
falam por todos, insistem em falarem pelos outros, quando, na verdade, estão
falando de si ao se julgarem universais.”
“Tirar essas pautas da invisibilidade e um olhar interseccional mostram-se muito importantes para que fujamos de análises simplistas ou para se romper com essa tentação de universalidade que exclui.”
Partindo de Simone
de Beauvoir:
“Diz-se que a mulher não é pensada a partir de si, mas em comparação ao homem. É como se ela se pusesse se opondo, fosse o outro do homem, aquela que não é homem.”
Sueli Carneiro concebe a mulher negra como “o outro do outro”:
“Quando falamos que a mulher é um subproduto do homem, posto que foi feita da costela de Adão, de que mulher estamos falando? Fazemos parte de um contingente de mulheres originárias de uma cultura que não tem Adão. Originárias de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva, coisa do diabo, esse também um alienígena para a nossa cultura.”
“O problema seria quando as diferenças significam desigualdades. O não reconhecimento de que partimos de lugares diferentes, posto que experenciamos gênero de modo diferente, leva à legitimação de um discurso excludente, pois não viabiliza outras formas de ser no mundo.”
“A nossa hipótese é que a partir da teoria do ponto de vista feminista é possível falar de lugar de fala.”
“Seria preciso entender as categorias de raça, gênero, classe e sexualidade como dispositivos fundamentais que favorecem as desigualdades e criam grupos em vez de pensar essas categorias como descritivas da identidade aplicadas a indivíduos.”
“O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social.
Quando falamos de
direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto
dificulta a possibilidade de transcendência. Absolutamente não tem a ver com
uma visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre o racismo, por
exemplo.”
Ponto crucial do livro, ao meu ver:
“No debate virtual, aqui no Brasil, nos acostumamos a ouvir os mesmos equívocos (...). ‘Fulana está falando a partir das vivências dela´, como se essas vivências, por mais que contenham experiências advindas da localização social de fulana, se mostrasse insuficiente para explicar uma série de questões. Como explica [Patricia Hill] Collins, a experiência de fulana importa, sem dúvida, mas o foco é justamente tentar entender as condições sociais que constituem o grupo do qual fulana faz parte e quais são as experiências que essa pessoa compartilha ainda como grupo. Reduzir a teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala somente às vivências seria um grande erro, pois aqui existe um estudo sobre como as opressões estruturais impedem que indivíduos de certos grupos tenham direito à fala, à humanidade. O fato de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo. Inclusive, ela até poderá dizer que nunca sentiu racismo, que sua vivência não comporta ou que ela nunca passou por isso. E sabemos o quanto alguns grupos adoram fazer uso dessas pessoas.”
“Por isso, seria igualmente um equívoco dizer que essa teoria perde validade pela existência de indivíduos reacionários pertencentes a grupos oprimidos. E assim seria porque Collins não está negando a perspectiva individual, mas dando ênfase ao lugar social que ocupam a partir da matriz de dominação. Por mais que sujeitos negros sejam reacionários, por exemplo, eles não deixam de sofrer com a opressão racista – o mesmo exemplo vale para outros grupos subalternizados. O contrário também é verdadeiro: por mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressões, elas não deixarão de ser beneficiadas, estruturalmente falando, pelas opressões que infligem a outros grupos. O que estamos questionando é a legitimidade que é conferida a quem pertence ao grupo localizado no poder.”
“O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas. A teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala nos faz refutar uma visão universal da mulher e de negritude, e outras identidades, assim como faz com que homens brancos, que se pensam universais, se racializem, entendam o que significa ser branco como metáfora do poder, como nos ensina [Grada] Kilomba. Com isso, pretende-se também refutar uma pretensa universalidade. Ao promover uma multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal. Busca-se aqui, sobretudo, lutar para romper com o regime de autorização discursiva.”
“Quando existe algum espaço para falar, por exemplo, para uma travesti negra, é permitido que ela fale sobre Economia, Astrofísica, ou só é permitido que ela fale sobre temas referentes ao fato de ela ser uma travesti negra? Saberes construídos fora do espaço acadêmico são considerados saberes? Kilomba nos incita a pensar sobre quais são os limites impostos dentro dessa lógica colonial e nos faz refletir sobre as consequências da imposição da máscara do silêncio.”
Reflexão de Grada Kilomba:
“Há um medo
apreensivo de que, se o sujeito colonial falar, o colonizador terá que escutar.
Ele/ela será forçado a um confronto desconfortável com as verdades dos ‘Outros’.”
“Ideias e verdades desagradáveis seriam mantidas fora da consciência por conta da extrema ansiedade, culpa e vergonha que elas causam.”
“Um dos equívocos mais recorrentes que vemos acontecer é a confusão entre lugar de fala e representatividade. Uma travesti negra pode não se sentir representada por um homem branco cis, mas esse homem branco cis pode teorizar sobre a realidade das pessoas trans e travestis a partir do lugar que ele ocupa.”
“Porém, falar a partir de lugares é também romper com essa lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma hegemônica sequer se pensem. Em outras palavras, é preciso, cada vez mais, que homens brancos cis estudem branquitude, cisgeneridade, masculinos.”
“Numa sociedade como a brasileira, de herança escravocrata, pessoas negras vão experenciar racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão, do lugar que restringe oportunidades por conta desse sistema de opressão. Pessoas brancas vão experenciar do lugar de quem se beneficia dessa mesma opressão. Logo, ambos os grupos podem e devem discutir essas questões, mas falarão de lugares distintos. Estamos dizendo, principalmente, que queremos e reivindicamos que a história sobre a escravidão no Brasil seja contada por nossas perspectivas também e não somente pela perspectiva de quem venceu.”
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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor
de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI -
Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).
Facebook: https://www.facebook.com/sincronicidio
Instagram: https://www.instagram.com/prosaepoesiadefabioshiva/
FAVELA
GÓTICA liberado na íntegra no site da Verlidelas Editora:
https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica
O
livro Favela Gótica fala sobre “a monstruosidade essencial do cotidiano”, em
uma história cheia de suspense, fantasia e aventura. Ao nos tornamos mais
conscientes das sombras que existem em nossa sociedade, seremos mais capazes,
assim como a protagonista Liana, de trilhar um caminho coletivo das Trevas para
a Luz.
A
versão física de Favela Gótica está à venda no site da Verlidelas, mas o autor
e a editora estão disponibilizando gratuitamente, inclusive para download, o
PDF de todo o livro.
Fique
à vontade para repassar o arquivo para amigos e parentes.
Leia
ou baixe todo o livro no link abaixo:
https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica
Link do livro no SKOOB:
https://www.skoob.com.br/livro/840734ED845858
Book
trailer
Entrevista sobre o livro na
FM Cultura
Resenha (Perpétua):
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