Joseph Wambaugh é um desses raros autores que conseguem fazer com que o leitor realmente entre na história. Durante o tempo que durou a leitura desse excelente “A Estrela Delta” (“The Delta Star” no original), eu me senti parte integrante da equipe policial de Rampart, Los Angeles. Acompanhei cada um de seus membros em suas incursões por situações para lá de bizarras e totalmente hilárias e, ao final de cada dia de trabalho, juntei-me aos demais na “Casa da Dor”, singelo apelido do boteco onde os tiras se reúnem para implicar uns com os outros e beber até o pré-coma.
Não será fácil esquecer tantos companheiros de peripécias e bebedeiras. Como o gigante insano apelidado de Tcheco Mau e seu parceiro Cecil, cuja única preocupação é acabar na penitenciária de San Quentin, com o traseiro alargado o suficiente para acomodar uma banda de jazz. Ou como Jane “Wayne”, a policial machona que tem no Tcheco Mau o seu objeto sexual preferido. Ou Hans e Ludwig, o policial da unidade K-9 e seu Rotweiller treinado, uma dupla que compartilha a mesma garrafa de cerveja e os mesmos problemas sexuais. Ou DIlbert, o policial chauvinista que odeia as mulheres, e Dolly, a mini-tira que odeia se parceiro Dilbert. Isso para não falar do Alucinado Tira de Costumes, que assombra a Casa da Dor com seus passos de gato e seus olhos de buraco de bala... Uma turminha e tanto!!!
E é claro que o destaque vai para Mario Villalobos, o sargento gringo com nome hispânico, um típico anti-herói de Wambaugh. É ele quem se vê envolvido na trama principal do livro, uma intriga que envolve prostitutas caindo de telhados, detetives particulares com problemas no marca-passo, gays histéricos que adoram sorvete e candidatos ao prêmio Nobel. Parece louco? Isso ainda não é nada: a solução do mistério depende do “Delta para a Estrela Delta”, uma condição química especial que ocorre quando o elétron “enlouquece” e alcança a criatividade.
“Ridendo castigat mores” – Rindo, são criticados os costumes. Tive a impressão de ver uma intenção mais elevada por detrás da sátira impiedosa e do humor mórbido e cruel. Pois o livro é absolutamente hilariante em muitas passagens insólitas. Depois da gargalhada, no entanto, fica a desconcertante visão de um mundo muito real, tristemente real.
Wambaugh é único. Habilidoso, original e cheio de estilo. Esse é o quarto livro dele que leio, e alguns “truques de autor” começam a ser percebidos. A Casa da Dor não é muito diferente do Domo Brilhante que dá título a outro de seus livros. E há também certas características recorrentes em seus personagens. Longe de representar um demérito, isso sinaliza para a capacidade maior de um escritor, que é a de criar um mundo à sua imagem e semelhança.
Quero registrar que no dia seguinte à postagem dessa resenha experimentei sentimentos depressivos que associei à leitura do livro.
Fiquei intrigado com isso e decidi investigar.
O livro tem passagens muito fortes, até chocantes, relatos da violência nulificadora que se torna banal no cotidiano das grandes cidades. Algumas cenas até agora se impõem à minha memória, retratos de sofrimento humano que não é menos real por ser inventado, pois espelha as grandes pequenas tragédias da vida moderna.
Foi então que percebi toda a extensão do grande artifício de Joseph Wambaugh. O impacto emocional dessas cenas havia passado despercebido, pois graças à habilidade do autor eu estava dando gargalhadas ao lê-las!
Lembrei de um extrato de crítica que foi publicado na contracapa do livro: Wambaugh transmite como ninguém realmente o que é que torna os policiais diferentes do resto de nós e, mais importante, o porquê.
Ninguém irá discordar que a rotina policial nas grandes cidades é desumanizadora e potencialmente massacrante das aspirações mais elevadas da alma. Para lidar com tanta violência sem sentido, que dá a impressão de que a própria vida carece muitas vezes de sentido, segundo Joseph Wambaugh o policial americano típico encontra duas saídas: desenvolve um ferino e exacerbado senso de humor e adquire uma propensão crescente para o alcoolismo.
O autor deve saber do que está falando. Afinal, teve anos de experiência na polícia de Los Angeles antes de se tornar escritor.
Uma outra conclusão fica cada vez mais aparente. Amo os livros policiais, mas venho me tornando cada vez mais consciente do preço que se paga para lê-los.
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