Uma obra magnífica, verdadeiro patrimônio da humanidade! A
criação de um gigante, o fruto de uma grande alma que por uns instantes assumiu
o nome de Leon Tolstoi.
É preciso que eu diga que “Ressurreição” chegou para mim
precisamente na hora certa. Nem antes, nem depois. É curioso e lindo como a
consciência vai selecionando os livros de que precisamos para nossa instrução e
crescimento.
A história gira em torno de Nekliudov, um membro da
aristocracia russa que passa por uma intensa transformação em seu íntimo. Tudo
começa com uma coincidência. Nekliudov é chamado para ser jurado em um
julgamento de assassinato. Uma das acusadas, a prostituta Maslova, é uma velha
conhecida de Nekliudov, que reconhece em si próprio as causas que levaram sua
conhecida a cair tão baixo.
Inicia-se a metamorfose espiritual do príncipe Nekliudov,
que começa a questionar a normalidade e sanidade de tudo o que até então tivera
como certo: as convenções sociais, as diferenças entre os homens ditadas pelo
dinheiro, o sistema que legitimava o direito à propriedade, a sociedade que
permitia e estimulava as pessoas a julgarem e torturarem seus semelhantes. Será
que Nekliudov está ficando louco? Ou será que o mundo é que está louco, e só
agora Nekliudov percebe isso?
“Ressurreição” não deixa de ser também uma história de amor,
tão bela e inspiradora como eu ainda não havia lido. É um comentário corrente
que os romances russos clássicos são abarrotados de personagens. Pode fazer
parte do estilo russo, essa característica. Mas ao menos em “Ressurreição”
enxerguei um brilhante propósito nessa profusão de personagens: à medida que
vai se operando a transformação de Nekliudov, seu amor deixa de ser egoísta e
centrado em um indivíduo, para se expandir para toda a espécie humana. E é
assim que ele vai passando a se interessar pela sorte de cada ser humano que
cruza o seu caminho.
O livro é também um comovente relato sobre a injustiça
essencial que reside no âmago de toda “justiça” humana. Tolstoi mostra com
genialidade essa absurda contradição, tão gritante e escandalosa, mas que
parece ser invisível para tantos “sábios” magistrados de ontem, hoje e sempre.
Não julgue, para não ser julgado. Quem não tiver pecado, que atire a primeira
pedra.
Algo que me chamou a atenção durante a leitura foi como
algumas questões fundamentais foram perdendo a importância desde que o livro
foi escrito (1899). Um ponto constantemente evocado na obra é o questionamento
sobre o direito do homem à propriedade. O mestre russo coloca isso de forma
simples e brilhante:
“A terra não pode ser objeto de propriedade privada, não
pode comprar-se nem vender-se, tal como a água, o ar e a luz do sol. Todos os
seres humanos têm o mesmo direito sobre a terra e tudo quanto ela produz.”
A impressão que tenho é que essa questão essencial foi
“varrida para debaixo do tapete” da humanidade. O fracasso do comunismo como
modo de produção gerou a errônea noção de que o capitalismo então é que deve
estar certo! Ninguém questiona mais o direito à propriedade, parece que virou
um tema cafona e ultrapassado. Na verdade o tema é tão evidente que, penso eu,
basta meditar a respeito com sinceridade de ânimo para perceber que precisamos
mudar esse estado de coisas. Lembro sempre da frase de Lênin:
“O que é um assalto a banco, diante de um banco?”
Toda propriedade é um roubo. Estamos todos aqui de passagem,
e somos todos irmãos, com os mesmos direitos à vida. O direito à propriedade é
uma infâmia que torna um homem superior aos demais. Mas isso só pode ser uma
condição momentânea, pois o certo é que a humanidade não poderá seguir
indefinidamente chafurdando na lama da ignorância. Mesmo porque a natureza já
começa a cobrar a conta dos excessos cometidos pelo capitalismo predatório...
Bom, isso foi só para mostrar como esse livro inesquecível é
capaz de nos transportar para grandes questionamentos, grandes reflexões,
grandes sentimentos!
“Aconteceu-lhe o que frequentemente acontece às pessoas que
vivem uma intensa vida espiritual. O pensamento que a princípio lhe aparecera
como estranho, um paradoxo, até como um gracejo, e que paulatinamente foi vendo
confirmado na vida, apresentou-se-lhe de súbito como uma verdade simples e
incontrovertível.”
Viva Tolstoi!
Trechos do livro:
“Em vão centenas de milhares de homens amontoados num
pequeno espaço se esforçavam por desfigurar a terra em que viviam; em vão a cobriam
de pedras para que nada pudesse crescer; em vão arrancavam as ervinhas que se
esforçavam por nascer; em vão impregnavam o ar de fumo de carvão e de petróleo;
em vão afugentavam os animais e os pássaros, porque até na cidade a primavera é
primavera.”
Só por essa abertura já dá para imaginar o colosso que será
esse livro!!!
“Em Nekliudov, como em todos os seres, havia dois homens.
Um, espiritual, que procurava o bem das outras pessoas, e outro, animal, que
apenas procurava o bem para si próprio e pelo qual estava disposto a sacrificar
o mundo inteiro.”
Simples e genial!!!
“Imitando os adultos, as crianças rezavam com devoção quando
alguém olhava para elas.”
“O povo sucumbe e está acostumado à sua situação. Criaram-se
umas condições propícias para que ele pereça, como por exemplo, o trabalho que
realizam as mulheres, superior às suas forças, e a falta de alimento para
todos, especialmente para os velhos e para as crianças. O povo chegou
paulatinamente a esse estado de coisas e por isso não vê todo o seu horror, nem
sequer se queixa dele. Também nós consideramos isto normal.”
“Também nós consideramos isto normal.”
“Também nós consideramos isto normal.”
“Também nós consideramos isto normal.”
Até quando???
“A terra não pode ser objeto de propriedade privada, não
pode comprar-se nem vender-se, tal como a água, o ar e a luz do sol. Todos os
seres humanos têm o mesmo direito sobre a terra e tudo quanto ela produz.”
“Sou incapaz de compreender a obra do Senhor. Mas, em
compensação, estou firmemente convencido de que posso cumprir a Sua vontade,
que está escrita na minha consciência. Quando a cumpro sinto uma grande
tranquilidade.”
“- Então por que é que há várias religiões? – perguntou
Nekliudov.
- Precisamente porque as pessoas acreditam nelas e não em si
próprias. Também eu acreditei nos outros e por isso andei perdido, como numa
floresta. Estava tão desorientado que julguei nunca mais poder encontrar o
caminho. Conheci muitas religiões diferentes. Todas se gabam a si próprias.
Todas se foram estendendo, tal como se arrastam alguns cãezinhos cegos. Há
muitas religiões, mas o espírito é único. É o mesmo em ti, nele, e em mim. Por
isso cada um tem de acreditar no seu espírito e deste modo todos ficarão
unidos.
O velho falava em voz alta, olhando à sua volta, como se
desejasse ser ouvido por muita gente.
- Já há muito que segue essa teoria? – perguntou Nekliudov.
- Eu? Sim, já há muito. Há vinte anos que me perseguem.
- Como?
- Da mesma maneira que perseguiam a Cristo. Prendem-me,
conduzem-me à frente dos juízes, dos padres, dos escrivães, dos fariseus... Até
me enclausuraram num manicômio. Mas não podem fazer-me nada porque eu sou
livre. Perguntam-me como é que eu me chamo. Imaginam que eu tenho nome. Mas não
tenho nenhum. Renunciei a tudo. Não tenho nome, pais, nem pátria. Não possuo
nada. Eu sou eu. Como me chamam? Homem. Quantos anos tenho? Não os conto; aliás
seria impossível fazê-lo porque existi sempre e sempre existirei. Perguntam-me
quem são o meu pai e a minha mãe. Deus é o meu pai e a terra a minha mãe.
‘Reconheces o czar?’, perguntam-me. ‘Por que não?’ Ele é czar para si próprio e
eu sou-o para mim próprio.”
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