Li
“Zona Morta” aos 15 anos, e reler o livro agora foi como vestir de novo uma
velha e confortável calça jeans. Esse está bem na média na vasta obra de Stephen
King: não é uma de suas obras-primas, mas também está longe de figurar entre as
piores. A história gira em torno de John Smith (algo como “João Silva” em
português), que enfrenta inúmeros perrengues ao despertar de um coma de quatro
anos e meio com poderes paranormais.
Stephen
King foi meu autor favorito na adolescência, depois enjoei. Desde o ano passado
cismei de ler (ou reler) mais alguns de seus livros, tentando entender não
tanto o que faz dele um escritor tão bom (pois isso percebi bem nas dezenas de
livros dele que já li), mas principalmente o que me fez gostar menos dele. Pois
então, curti bastante reler “Zona Morta”, mas percebi aqui uma incongruência
muito interessante, que talvez seja crucial na obra do autor: Stephen King é
essencialmente um materialista, apesar (ou justamente por causa) de ter ficado
célebre tratando de temas sobrenaturais. A concepção de um médium ateu é
totalmente inverossímil, mas de um modo invisível para um materialista. Talvez
só os ateus possam escrever histórias de terror no estilo moderno, ocidental.
Lembrando de certas passagens escabrosas do Mahabharata, penso que um olhar
espiritualizado é capaz de conceber um tipo de terror totalmente diferente, o
que me enche a cabeça de ideias e possibilidades...
Mas
como a Literatura tem o poder de nos surpreender, a maior parte dessa releitura
girou em torno da inquietante pergunta que Stephen King faz na segunda parte do
livro:
“SE VOCÊ PUDESSE VOLTAR
NO TEMPO ATÉ O ANO DE 1932, NA ALEMANHA, VOCÊ MATARIA HITLER?”
Isso
me levou a viajar por lugares inesperados. Pois recentemente me pus a refletir
sobre o que levaria uma pessoa em sã consciência a querer a volta da ditadura
militar, ou a alternativa democrática mais próxima disso, que seria querer
votar em Bolsonaro. Tenho notado um número alarmante de amigos e parentes
defendendo esse tipo de ideia, por isso fiz um esforço honesto de tentar
compreender suas motivações. O me levou a traçar um perfil básico de um
defensor da ditadura / eleitor de Bolsonaro:
*
Sente-se lesado em seus direitos ou injustiçado de alguma forma. Devido ao
componente de raiva muito forte em seus sentimentos, talvez a palavra mais
adequada seja “ultrajado”.
*
Acredita fazer parte de uma elite moral ou virtuosa (os “honestos”, “trabalhadores”
ou “de família”).
*
Possui uma noção muito estreita de coletividade. Seu “próximo” limita-se à sua
família imediata e/ou ao grupo virtuoso ao qual acredita pertencer.
*
Sente raiva, muita raiva. E acredita que a solução para a sua raiva seja uma
bota na cara de alguém, de preferência alguém rotulado como pertencente a um
grupo oposto ao seu: os “desonestos”, “vagabundos” e “imorais”.
*
E aqui está o ponto central da coisa: acha certo delegar poderes a alguém que
se propõe a meter a bota na cara dos outros, e acredita estar protegido dessa
bota, por pertencer ao grupo virtuoso.
A
imagem da “bota na cara” vem do clássico “1984”, de George Orwell, que traz a
frase mais apavorante que já li em um livro, a ponto de ter ficado gravada a
ferro e fogo na memória:
“Se
queres uma imagem do futuro, pensa numa bota esmagando um rosto humano – para sempre.”
Essa
questão da raiva motivou Stephen Hawking a declarar recentemente que teme pelo
futuro da humanidade, a partir de situações como a eleição de Trump e o Brexit.
Bolsonaro e a volta da ditadura são as manifestações brasileiras dessa ameaça planetária.
De
Bolsonaro a Hitler, e daí à “Zona Morta”: pensar nessas questões realmente
aterrorizantes me fez perceber que Hitler não foi esse monstro todo-poderoso,
capaz de arrastar seu país – e o mundo – para o caos da violência sem sentido. O
povo alemão, que se sentia ultrajado e raivoso na época da República de Weimar,
é que tornou Hitler possível. Por isso, respondendo à pergunta de Stephen King,
não adiantaria muito matar Hitler em 1932. O povo encontraria outro candidato
disposto a meter a bota na cara dos outros. Desde a época das cavernas,
infelizmente, esse tipo de ser humano nunca esteve em falta no mercado.
\\\***///
MANIFESTO – Mensageiros
do Vento
Um
experimento literário realizado com muita autenticidade e ousadia. A ideia é
apresentar um diálogo contínuo, não de diversos personagens entre si, mas entre
as diversas vozes de um coral e o leitor. Seguir a pista do fluxo da
consciência e levá-la a um surpreendente ritmo da consciência. A meta desse
livro é gerar ondas, movimento e transformação na cabeça do leitor. Clarice
Lispector, Ferreira Gullar, James Joyce e Virginia Woolf, entre outros, são
grandes influências. Por demonstrarem que a literatura pode ser vista como uma
caixa fechada, e que um dos papéis mais essenciais do escritor é, de dentro da
caixa, testar os limites das paredes... Agora imagine esse livro escrito por
uma banda de rock! É o que encontramos no livro MANIFESTO – Mensageiros do
Vento, disponível aqui. Leia e descubra por si mesmo!
http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5823590
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