“Memórias do Cárcere” é um
livro autobiográfico, que relata os dez meses que o autor passou como
prisioneiro político em 1936, durante as agitações que antecederam a ditadura
de Getúlio Vargas, que foi de 1937 a 1945. Quando lemos essa obra magnífica em
meio ao turbilhão político e ideológico em que vivemos atualmente, o que
primeiro salta aos olhos é o quanto o fascismo tem história no Brasil, a ponto
de poder ser considerado uma verdadeira tradição brasileira. Muitas das
pavorosas cenas descritas no livro, para meu grande espanto, poderiam estar
acontecendo nos dias de hoje. Por esse motivo, boa parte da leitura foi
destinada a reflexões sobre o que é o fascismo e sobre o porquê do fascismo ser
tão atrativo para nós, brasileiros.
A palavra “fascismo” deriva do italiano “fascio”, que significa “feixe de varas”. A ideia básica por trás desse nome é a de que uma única vara ou graveto pode ser facilmente quebrada, mas um feixe de varas torna-se difícil de quebrar. Notem como essa ideia, em si, traduz algo não somente verdadeiro, como belo também: “a união faz a força”.
O problema só começa quando o fascismo substitui a palavra “união” pela palavra “maioria”, afirmando que a maioria é soberana e que as minorias devem se curvar à vontade da maioria. À primeira vista, essa parece ser uma ideia perfeitamente lógica e até justa. Só que o passo seguinte e imediato do fascismo é utilizar a força do feixe para quebrar os gravetos isolados. Ou seja: utilizar a força da maioria para fazer calar e até destruir as minorias. E aí é que nós percebemos o poder das palavras que expressam as ideias, e como uma sutil troca de palavras pode se tornar extremamente perigosa.
Pois o fascismo começa afirmando que a união é boa. Ninguém tem como discordar dessa afirmação. Mas daí vem o fascismo e diz que a união da maioria é boa. E antes que tenhamos tempo de decidir se essa afirmação é válida, o fascismo já está dizendo que a maioria é boa, e logo em seguida que só a maioria é boa. E assim, em um piscar de olhos, o fascismo já está usando a força da maioria para perseguir as minorias. Notem que o que começou afirmando a força da união rapidamente se torna um poder destrutivo, que provoca o ódio e, justamente, a desunião.
Sabem uma imagem que representa o fascismo melhor que a do feixe de varas? É a de um valentão truculento e autoritário, que quer resolver qualquer diferença de opinião com a força dos músculos, na porrada. Essa imagem do valentão nos ajuda a entender que o fascismo não trata de união, nem sequer de maioria, mas única e exclusivamente de força. O fascismo, em resumo, é o culto à lei do mais forte.
E aqui eu evoco a sabedoria de meu mestre de capoeira, Mestre Tyko Kamaleão, quando ele fala do “pseudo-valentão”:
“O
pseudo-valentão é aquele que se coloca como um homem valente, mas que deixa
ver, escondida por debaixo da casca do personagem, uma criança medrosa, pedindo
proteção e carinho.” (Mestre Tyko
Kamaleão)
Como toda minoria nada mais é que um grupo de pessoas que age ou pensa de forma diferente da maioria, o fascismo acaba se tornando uma máquina inventada para perseguir as minorias, em nome de um complexo de inferioridade de uma maioria medíocre. É esse um retrato do Brasil de Graciliano Ramos que, infelizmente, ainda reflete boa parte do Brasil de hoje.
“Memórias do Cárcere”, publicado em 1953, como obra póstuma, e logo se tornou o maior sucesso de vendas do autor. Em 1984 a obra foi transformada em um filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos (https://youtu.be/p0Gy67_6kJc).
A primeira vez que li esse
livro, aos 14 anos, me marcou profundamente. E só 30 anos depois, ao reler
essas “Memórias”, foi que tive a verdadeira dimensão do impacto provocado em
mim pela força da personalidade e da prosa de Graciliano Ramos. Pois só então
percebi o quanto o homem e o escritor que sou inconscientemente se espelharam
na severa figura parental projetada pelo “velho Graça”: o que será que ele diria
de meus escritos?
“Realmente a desgraça nos ensina muito: sem ela, eu continuaria a julgar a humanidade incapaz de verdadeira nobreza.”
“Nunca eu me vira sem ocupação: enxergava na preguiça uma espécie de furto.”
“O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, que futuro nos reservariam?”
“Por que desprezá-los ou condená-los? Existem – e é o suficiente para serem aceitos.” (sobre os homossexuais)
“Vemos um sujeito sem as unhas dos pés, sabemos que elas foram arrancadas a torquês, e a nossa curiosidade não vai além; os sofrimentos findaram, as unhas renascerão, a memória da vítima se embotou; horrível é imaginarmos a redução de uma criatura com tenazes quando pensamos nela, exatamente quando pensamos nela.”
“Não nos revolta a safadeza, revolta-nos a estupudez.”
“Todos em roda estavam assim, firmes, de braços cruzados, impassíveis. Nenhum sinal de protesto, ao menos de compaixão. Também me comportara com essa horrível indiferença, como se assistisse a uma cena comum. Éramos frangalhos; éramos fontes secas; éramos desgraçados egoísmos cheios de pavor. Tinham-nos reduzido a isso.”
“Vocês não vêm corrigir-se, estão ouvindo? Não vêm corrigir-se: vêm morrer.” (fala de um dos guardas da colônia correcional)
“Ali no canto da sala enorme, à direita, os nossos receios se limitavam: desapareceríamos daquele jeito, iguais ao Neves, a Domício Fernandes, ao negro ansioso que pedia uma injeção de morfina. Essa perspectiva de nenhum modo era desagradável; tínhamos imaginado torturas, a chama do maçarico devastando carnes, e o consumo lento, a inanição, quase nos surgia como favor.”
“José Lins é memorialista, o grande mérito dele é haver exposto, nua e bárbara, a vida nos engenhos de açúcar; é uma enorme força que se esvai fora de seu âmbito.” (sobre José Lins do Rego)
“A imaginação de Jorge os encantava, imaginação viva, tão forte que ele supõe falar a verdade ao narrar-nos existências românticas nos saveiros, nos cais, nas fazendas de cacau.” (sobre Jorge Amado)
“Era coisa prevista, imaginada sempre, mas o jeito de fazer o enterro, a mudança de uma criatura humana em pacote jogado fora sem quebra da rotina, expôs-me com horrível clareza à insignificância das nossas vidas.”
“O Governo se corrompera em demasia; para aguentar-se, precisava simular conjuras, grandes perigos, salvar o país enchendo as cadeias.”
“O temor às vezes nos leva a temeridades, empresta às nossas ações aparência falsa de coragem.”
“Impossível conceber o sofrimento alheio se não sofremos.”
“A perspectiva de liberdade assustava-me. Em que iria ocupar-me? Era absurdo confessar o desejo de permanecer ali, ocioso, inútil, com receio de andar nas ruas, tentar viver, responsabilizar-me por qualquer serviço.”
“Apareciam-me de longe divergências em esboço, e éramos forçados a reconhecer que ninguém tinha culpa. Estávamos feitos daquele jeito, cada um de nós estava feito de certo modo – e em vão tentávamos explicar uns aos outros que a leitura de um artigo não nos transformava.”
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FAVELA
GÓTICA liberado na íntegra no site da Verlidelas Editora:
https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica
Durante esse período de pandemia, em meio a tantas incertezas, temos uma única garantia: a de que nada será como antes. Estamos todos tendo a oportunidade preciosa de participar ativamente na reconstrução de um mundo novo, mais luminoso e solidário.
O livro Favela Gótica fala justamente sobre “a monstruosidade essencial do cotidiano”, em uma história cheia de suspense, fantasia e aventura. Ao nos tornamos mais conscientes das sombras que existem em nossa sociedade, seremos mais capazes, assim como a protagonista Liana, de trilhar um caminho coletivo das Trevas para a Luz.
A versão física de Favela Gótica está à venda no site da Verlidelas, mas – na tentativa de proporcionar entretenimento a todos durante a quarentena – o autor e a editora estão disponibilizando gratuitamente, inclusive para download, o PDF de todo o livro.
Fique à vontade para repassar o arquivo para amigos e parentes.
Leia ou baixe todo o livro no link abaixo:
https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica
Link do livro no SKOOB:
https://www.skoob.com.br/livro/840734ED845858
Book trailer
Entrevista sobre o livro na
FM Cultura
Ora muito bem!!:)
ResponderExcluir.
Uma luz que serena a minha alma.
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Beijo e uma excelente noite!
Gratidão!
Excluirbjs!