terça-feira, 29 de junho de 2021

MIL TSURUS – Yasunari Kawabata


  

Há cerca de dois anos travei meu primeiro contato com a Literatura de Kawabata, através de seu instigante “A Casa das Belas Adormecidas” (http://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2019/09/a-casa-das-belas-adormecidas-yasunari.html), que conta a surpreendente história do bordel frequentado apenas por homens idosos, considerados “inofensivos”, que pagam para passar a noite ao lado de jovens nuas e narcotizadas. Foi uma leitura que me causou uma forte impressão, ainda mais depois que descobri que o autor, que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1968, suicidou-se quatro anos depois, aos 73 anos de idade.

Gostei ainda mais de “Mil Tsurus” (titulo em português dado pela Estação Liberdade para Senbazuru no original em japonês, que ganhou a tradução de “Nuvens de Pássaros Brancos” na versão da Nova Fronteira e de “Chá e Amor” para a edição portuguesa da Veja). Tsuru é um pássaro japonês, semelhante à garça, que simboliza saúde, boa sorte e felicidade. De acordo com a tradição (não mencionada no livro), se uma pessoa fizer mil tsurus de origami (arte de construir figuras a partir do papel dobrado), o desejo de seu coração se realizará. Só posso dizer que a impressão que tive, ao final da leitura, foi que Kawabata utilizou-se de fina ironia ao dar esse título à sua obra.


Trata-se de um romance de estrutura aparentemente simples, mas que esconde diversas camadas de significado, que podem ou não ser desvendadas, de acordo com a intensidade do mergulho do leitor. O erotismo permeia toda a trama, com alguns toques marcantes, que grudam na mente da gente (tal como a cena apresentada logo no início, quando o protagonista Kikuji flagra uma amante de seu pai nua e descobre que ela possui uma mancha escura e cabeluda que cobre um de seus seios). Contudo até mesmo esses detalhes bizarros não estão ali por acaso, mas seguem um intrincado padrão de metáforas que se desenrola lindamente ao longo do livro.

Pois “Mil Tsurus” é principalmente uma obra sutil, refinada, como a Cerimônia do Chá que aparece como um dos temas principais da história. Kawabata retrata com mão levíssima a decadência da alma e da cultura japonesas a partir do período pós-Segunda Guerra (o romance foi escrito entre 1949 e 1952). E a “manifestação de uma aventura”, como o antigo grão-mestre Sen Soushitsu definia a Cerimônia do Chá, é o pano de fundo mais que adequado para exemplificar essa decadência. Mas tudo é apresentado de forma tão sutil e tão bela, que ao menos para mim o efeito foi maravilhoso: consegui ter alguns vislumbres do maravilhamento de uma cerimônia do chá em meu dia-a-dia soteropolitano do século XXI, em plena pandemia do coronavírus. Só por esse motivo, esse lindo texto já teria a minha profunda gratidão.

Encerro com essas duas pinceladas da sublime prosa de Yasunari Kawabata:

“Mal se recordava do rosto de seu pai e sua mãe, falecidos poucos anos antes. Só conseguia ter uma visão clara de ambos diante de suas fotografias. Talvez assim o fosse porque, quanto mais próxima ou amada a pessoa, mais difícil descrever seu rosto com detalhes. Por outro lado, quanto mais feia a figura, mais fácil guardá-la na memória.

Enquanto os olhos e a face de Yukiko eram, para Kikuji, abstratos como a luz, a mancha que cobria o seio de Chikako constituía-lhe uma lembrança concreta, como o rastro de um sapo asqueroso.”


“– Quando observo estes chawan, não penso nos defeitos dos antigos donos. A vida de meu pai, por exemplo, equivale apenas a uma pequena fração da existência dessas peças tradicionais.

– A morte está sempre em nosso encalço. E isso me apavora. Se esse é um fato iminente, não devo ficar amarrada para sempre à morte de minha mãe. Por isso, tenho feito várias coisas para tentar superar essa obsessão.”  


 

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