Resenha de “BEOWULF:
uma tradução comentada” de J. R. R. Tolkien
Meu primeiro contato com a lenda de Beowulf, como talvez tenha acontecido com a maioria das pessoas atualmente, foi mesmo através do filme de 2007 (https://youtu.be/DaShOr5AeKA), dirigido por Robert Zemeckis e com roteiro de Neil Gaiman e Roger Avary. Neil Gaiman, celebrado criador de “Sandman”, aliás, em uma entrevista sobre esse filme tocou em um ponto crucial da história de Beowulf:
“O que é mais interessante em Beowulf é o que leva as pessoas a recontarem essa história. Ela foi criada originalmente como um conto de tradição oral - não era um produto de caneta e papel escrito por um monge. Alguém chegaria na sua casa e contaria a história de Beowulf. E era uma coisa emocionante, interativa, Grendel vindo pelo corredor, a mãe de Grendel ainda mais assustadora, tanto que ela nem tem nome. É uma história obsessiva. Não acho que a versão que Anthony Hopkins e Angelina Jolie filmaram vai ser definitiva, assim como ninguem vai fazer a versão definitiva do Rei Arthur, ou a versão definitiva de Hamlet. É algo para ser contado e recontado.”
É inegável o fascínio exercido pela narrativa do valente Beowulf, que tinha a força de trinta guerreiros e que se voluntariou para livrar o reino do Rei Hrothgar do monstruoso Grendel, enfrentando a fera devoradora de homens apenas com as mãos nuas. Esse fascínio fica mais do que evidente durante a leitura dessa “tradução comentada” de J. R. R. Tolkien (que no Brasil ganhou uma excelente edição bilíngue da Editora Martins Fontes), com nada menos que cinco versões da mesma história. Temos a tradução feita pelo próprio Tolkien, que verteu o poema original em inglês antigo (anglo-saxão) para o inglês moderno, a tradução para o português (feita por Ronald Eduard Kyrmse, membro da Tolkien Society e do grupo linguístico “Quendily”), seguida pelo conto “Sellic Spell”, que é uma variação dos temas centrais do poema feita por Tolkien, e fechando com duas versões da “Balada de Beowulf”. Está bom para você ou quer mais?
Se quiser mais (como eu quis), encontrará muitos motivos para deleite nos extensos “Comentários complementares à tradução de Beowulf”, que ocupam a maior parte das mais de 500 páginas do livro. São basicamente anotações de aulas e conferências feitas pelo professor Tolkien a respeito de sua tradução do poema.
Tenho um interesse natural pelo estudo de outras línguas, especialmente o inglês. Amo tanto Shakespeare que cheguei a ler boa parte de suas obras no original, em inglês “arcaico”. Ou ao menos, era o que eu pensava! Não sabia que o termo “inglês antigo” refere-se, na verdade, a uma língua pelo menos meio milêncio anterior à utilizada por Master Shakespeare e tão diferente do inglês contemporâneo que precisava ser, literalmente, traduzida!
“Nosso manuscrito é de cerca do ano 1000 d.C., 250 anos, aproximadamente, depois que o poema foi composto.”
“O tempo dramático de Beowulf é o século VI, com um pano de fundo de tradições mais obscuras e mais antigas do século V.”
Confesso que minha intenção inicial era apenas ler a história principal e, na hora da aula de tradução, disfarçadamente sair de fininho da sala. Para minha sorte, porém, decidir ler apenas o comecinho desses comentários… e só conseguir largar o livro na última página!
Sem a menor dúvida, os comentários de Tolkien são muito mais empolgantes que a própria saga de Beowulf. Até porque, para aqueles que, como eu, conheceram a história primeiro através do filme, o poema guarda poucas emoções e chega a parecer pálido em comparação. Neil Gaiman e Roger Avary acrescentaram muitos elementos perturbadores à história, fazendo com que sua ausência seja agudamente sentida no texto original.
Mas o maravilhamento dessa leitura não é tanto o poema em si, mas a tradução feita por Tolkien e, especialmente, todo o intenso processo intelectual envolvido nessa tradução. É inspirador travar contato com a extensa erudição de Tolkien, bem como com o seu perfeccionismo e intensa atenção para as minúcias. Lendo suas anotações, entramos um pouco na colossal mente do criador de “O Senhor dos Aneis”.
Existe um conhecido ditado que diz “Tradutor, traidor”, que implica que toda tradução acaba sendo de alguma forma desleal com aquilo que está traduzindo. Isso é muito bem (e poeticamente) expresso nessa paradoxal definição (ignoro o genial autor): “Poesia é aquilo que fica de fora na tradução”. Seguindo-se a nobre escola de Tolkien, penso eu, muitos dos abismos inerentes à tradução podem ser superados. Se eu pudesse resumir em um ensinamento o que aprendi nessa leitura, seria: “um bom tradutor ama aquilo que traduz”. Vejam o amor que emana dessas palavras de Tolkien:
“Uma recompensa (que ele mal podia ter esperado) foi-lhe concedida: sua obra haveria de ser a principal peça de poesia em inglês antigo a sobreviver às ruínas do tempo, ainda proveitosa para os homens lerem por seu próprio mérito, muito além do valor que adquiriu como janela para o passado. Uma punição para seus pequenos defeitos (que ele não merecia) é que homens ignorantes, mesmo da sua própria fé, zombem do poema ou o chamem de ‘café pequeno’. O fato de agora sua obra não poder ser lida sem dificuldade, nem compreendida e valorizada em detalhes sem muito esforço, deve-se sob Deus a wyrd, a sina dos homens de viverem brevemente num mundo onde tudo murcha e é esquecido. A língua inglesa mudou – mas não necessariamente melhorou – em mil anos. wyrd delegou ao esquecimento quase toda a sua parentela. Mas Beowulf sobrevive, por algum tempo, enquanto a erudição possui alguma honra em sua terra.”
Muitos outros aprendizados tive nessa leitura, sobre a própria arte de contar histórias:
“Aprender de cor, de outros membros mais velhos do seu ofício, era parte da ocupação do scop ou menestrel, e do pyle, ‘registrador’ de genealogias e de histórias em prosa. Mas também era seu dever fazer baladas, ou contos, ou listas mnemônicas acerca de assuntos submetidos à sua própria observação contemporânea.”
“É característico de nosso poeta (e da maioria dos poetas anglo-saxões que deixaram algum vestígio) inserir essa obscura nota do destino imediatamente após descrever o esplendor recém-construído do salão.”
“No inglês antigo, a atenuação não é mero hábito coloquial, apesar de constituir, por assim dizer, um modo linguístico. Ocorre com grande frequência em momentos de ‘alta tensão’, nos quais os romancistas posteriores (medievais) tendiam a empilhar palavras e superlativos, como se o poeta (e o modo linguístico que herdou) subitamente se desse conta de que gritar só torna surdo, e que às vezes é mais eficaz baixar a voz.”
“Podemos ver que ele se baseia em uma história ou lenda histórica bastante extensa, lenta, detalhada, com muitos atores, à moda inglesa, e não contraída, concentrada e intensamente pessoal, à moda nórdica.”
Terminei a leitura, por incrível que pareça, com um gostinho de “quero mais”. Acho que vou assistir ao filme de novo!
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