terça-feira, 29 de março de 2022

OU A SALVAÇÃO VEM PARA TODOS, OU NINGUÉM SERÁ SALVO. ASSIM SEJA!

 


Reprodução do texto “Dois sonhos esquisitos”, de Fabio Shiva, presente no livro “NÃO SEREMOS OS MESMOS JAMAIS” (vários autores – organização de Bia Machado)

https://www.amazon.com.br/N%C3%A3o-seremos-os-mesmos-jamais-ebook/dp/B09L4H5TJ7

 

Dois sonhos esquisitos

 

Fabio Shiva

Você já teve um sonho em formato de história em quadrinhos? Desde que começou a pandemia do novo coronavírus tenho tido alguns assim, com imagens estáticas desenhadas, em preto e branco ou a cores, que meu olhar vai acompanhando à medida que o sonho se desenrola.

Um desses sonhos começa com uma nave espacial descendo em uma praça. Sai um ET da nave e grita para o povo que já se aglomera ao redor:

– Ó humanidade! Eis que trago a cura para a Covid-19!

Alguns indagam:

– É a vacina?

Enquanto outros gritam:

– É a cloroquina!

E outros ainda insistem:

– E a ivermectina?

– Nada disso – rebate o alienígena. – A cura se chama CONSCIÊNCIA PLANETÁRIA!

Ato contínuo, a multidão começa a se dispersar, deixando o alien sozinho na praça, com cara de quem não está entendendo nada. Ao que parece, ninguém está muito interessado em consciência planetária...

Fiquei intrigado com esse sonho, que me fez refletir bastante. Uma das principais raízes simbólicas que detectei foi a leitura de uma entrevista concedida pelo físico e ambientalista Fritjof Capra, autor de obras que me marcaram muito, como “O Tao da Física” e “O Ponto de Mutação”. Nessa entrevista, Capra faz uma declaração bombástica: a pandemia é a resposta biológica do planeta Terra à devastação ambiental que vem sendo perpetrada pela humanidade. E ele vai ainda mais longe, ao afirmar não só que a pandemia surgiu do desequilíbrio ecológico provocado por uma economia predatória, mas que as consequências dramáticas que enfrentamos hoje foram agravadas diretamente por conta das desigualdades sociais e até da cultura de ódio que parece permear toda a nossa civilização humana.


https://youtu.be/nv9lVJ7ivpo

 

Para alguns, essas afirmações podem parecer tão chocantes e incômodas que a primeira tentação deve ser descartá-las sumariamente, como um amontoado de bobagens supersticiosas, sem o menor fundamento científico. Se for esse o seu caso, peço que exercite a tolerância com essas ideias aparentemente tão estranhas, dedicando um pouco de seu tempo e de sua energia mental para avaliar se de fato elas são despropositadas ou não.

A chave para compreender essas afirmações de Fritjof Capra está no pensamento sistêmico, uma abordagem teórica que surge no século XX como uma alternativa aos velhos modelos mecanicistas herdados do século XVII. Um simples exemplo pode nos ajudar a compreender melhor qual é a proposta essencial do pensamento sistêmico. Creio que o próprio Capra apresenta esse exemplo em seu livro “O Tao da Física”.

Imagine que você é um cientista que tem como objeto de estudo um determinado conjunto de árvores que compõem uma floresta. Seguindo o modelo científico tradicional, que é o reducionista-mecanicista, o universo é concebido como um grande mecanismo e para compreendê-lo é preciso decompô-lo em suas menores engrenagens. De acordo com esse modelo, portanto, para estudar a floresta você precisa dividi-la em suas árvores componentes e, mais ainda, analisar as partes componentes de cada árvore, até os mínimos detalhes. Para entender a floresta, em resumo, você precisa primeiro saber tudo sobre a folha.


Já o pensamento sistêmico segue um direcionamento praticamente oposto: para conhecer a folha, você precisa primeiro entender o que é uma floresta e enxergar a floresta como um todo. O universo é visto como algo mais próximo de um ser vivo que de uma máquina, com suas partes componentes em permanente interconexão.

Mas e qual é a vantagem, afinal, dessa nova abordagem do pensamento sistêmico? A resposta a essa pergunta é mais simples do que parece à primeira vista. É verdade que a abordagem mecanicista foi válida durante algum tempo, possibilitando um avanço tecnológico nunca antes visto em nossa era. Na verdade a proposta não é rejeitar esse modelo, mas ir além dele. A visão mecanicista do mundo, que há 300 anos tem sido dominante, não tem mais como dar conta sozinha do mundo em que vivemos hoje.

Pois na mesma proporção em que experimentamos um intenso progresso científico, aumentaram também as complexidades e contradições da sociedade humana. Justamente devido à falta dessa visão sistêmica, o crescimento econômico a qualquer custo e o avanço científico isento de considerações de ordem ética acabaram gerando, hoje, mais problemas que soluções. Basta lembrar que antes da pandemia estávamos às voltas com pelo menos uma meia dúzia de apocalipses em perspectiva, sendo todos eles gerados pelo descontrole da sociedade de consumo na depredação dos recursos naturais: aquecimento global, extinção das abelhas, esgotamento da água potável, superpopulação, buraco na camada de ozônio e colapso econômico mundial, e essas são apenas seis dentre as possibilidades de fim do mundo que saíram abruptamente de cena quando a Covid-19 entrou no palco.


Todas essas considerações, infelizmente, são vastas demais para serem apreendidas pela mente humana em alguns poucos instantes. É muito difícil imaginar o tamanho da bomba que teremos nas mãos em um futuro não tão distante devido apenas ao aquecimento global, só para citar um dos fatores mencionados acima. Por isso vamos recorrer mais uma vez a alguns exemplos de ordem prática, tirados da vida cotidiana.

Uma amiga minha, que é dançarina, me contou que há alguns anos, devido a uma lesão na região lombar, ela foi proibida pelo médico de usar saltos altos e, de modo geral, foi recomendada a evitar forçar as panturrilhas, pois isso pouparia a área afetada. Mais recentemente, contudo, ela teve uma nova lesão, dessa vez no joelho, e foi encaminhada para a fisioterapia. Enfrentando o stress de ter que ir a uma clínica hospitalar duas vezes por semana em plena pandemia, essa amiga decidiu iniciar o tratamento, pois desejava curar o quanto antes o joelho lesionado. Qual não foi a sua surpresa, no entanto, ao descobrir que a sessão de fisioterapia consistia quase que exclusivamente em subir e descer degraus, um exercício que exigia muito de suas panturrilhas e, consequentemente, forçava a sua já fragilizada região lombar. Ao final da primeira sessão, ela mal conseguia andar de tantas dores lombares. Antes de começar a sessão seguinte, ela expôs todo o problema para o fisioterapeuta, e recebeu uma surpreendente resposta:

– Sinto muito, mas só posso cuidar do problema de seu joelho. Para resolver o problema da lombar, a senhora vai ter que consultar outro médico...


Esse episódio, que de tão absurdo até evoca alguma cena de Kafka, me fez lembrar também de uma conhecida piada popular. O sujeito acorda com uma dor terrível no testículo esquerdo. Liga para o seu plano de saúde e marca uma consulta com um especialista. Contudo ao chegar no endereço, devido às fortes dores que está sentindo, ele acaba se atrapalhando e entra por engano em um consultório de advocacia. Ao vê-lo entrando em seu escritório, o advogado indaga:

– Pois não, em que posso ajudá-lo?

Ao que o homem responde:

– Doutor, estou sentindo uma dor intensa no ovo esquerdo...

O advogado retruca, indignado:

– Meu senhor, saiba que eu sou um especialista em Direito!

O homem coça a cabeça, sem deixar por menos:

– Vá ser especializado assim lá na...!!!

Tanto o episódio verídico acontecido com minha amiga quanto a anedota retratam um problema típico de nossos tempos, que aparece de forma mais sensível justamente na área da medicina, pois quase todo mundo, vez ou outra precisa consultar um médico. E quase todo mundo já se deparou, ou ao menos conhece alguém que tenha se deparado, com a seguinte contradição: se vai tomar um remédio para a cabeça, tem o efeito colateral de afetar o estômago. Daí precisa de um remédio para o estômago, que acaba alterando a pressão sanguínea. Infelizmente, o remédio para regular a pressão provoca uma crise nos rins, que também precisa ser medicada. A essa altura, a pessoa já está gastando tanto dinheiro com medicamentos que acaba entrando em depressão, o que demanda que tome mais um remédio para a cabeça...

Dito dessa forma, a situação até pode parecer engraçada, quando na verdade é trágica. Outra amiga minha, que prestava serviços como diarista, sofria de um problema crônico no coração, mas desencarnou em consequência de um colapso renal, provocado pelo excesso de remédios para o coração. Nada diferente da situação das pessoas que, iludidas por campanhas de desinformação, se automedicaram com Ivermectina ou Hidroxicloroquina acreditando que estariam se protegendo da Covid-19, mas só conseguiram provocar sérios danos ao fígado e a outros órgãos.

Todos esses exemplos nos mostram algumas das tristes consequências da visão mecanicista em apenas uma das áreas do conhecimento humano, que é a medicina. Ao insistir em enxergar o ser humano como uma espécie de máquina, que para ser consertada quando quebra basta regular ou substituir a peça que está dando defeito, a medicina tradicional é responsável pela criação de uma humanidade enfermiça, que se mantém funcionando minimamente à custa de caixas e mais caixas de remédios industrializados. Basta contar a quantidade de farmácias que temos no Brasil, em qualquer rua principal de qualquer bairro de qualquer cidade brasileira, para constatar que algo vai escandalosamente mal em nossa sociedade.


Outro fator decorrente do reducionismo mecanicista e que impacta diretamente na (má) saúde das pessoas pode ser resumido no célebre axioma: “as pessoas que cuidam de nossa saúde não se preocupam com nossa alimentação, e as pessoas que cuidam de nossa alimentação não se preocupam com nossa saúde”. Uma abordagem sistêmica evidenciaria, como as abominações que são, práticas que consideramos absolutamente normais, tais como viciar nossas crianças em açúcar refinado desde a mais tenra idade e entupi-las de refrigerantes e processados repletos de substâncias químicas tóxicas, que apenas a nossa cegueira moral permite chamar de alimentos (quando na melhor das hipóteses poderiam ser chamados de “produtos comestíveis”).

É claro que a culpa por esse estado de coisas não está apenas na orientação reducionista-mecanicista dos médicos e nutricionistas tradicionais. Não podemos esquecer a indústria farmacêutica, uma das mais poderosas do mundo, cujo propósito de existência não é curar a doença de ninguém, mas única e simplesmente gerar lucro para seus acionistas. Dentro dessa cruel e inflexível lógica do lucro, se determinado medicamento gera efeitos colaterais que farão a pessoa precisar de outros remédios, tanto melhor para a indústria.

Aliás, o fato de sermos uma sociedade que idolatra o lucro acima de tudo está por trás de praticamente todos os males de nossos tempos. Dedique algum tempo para refletir sobre esse ponto, através de um pequeno exercício que, apesar de muito simples, pode se tornar bastante assustador: observe cada produto ou serviço que utiliza em seu dia a dia, tentando enxergá-lo não como algo que foi criado para atender o fim ao qual se destina, mas que existe principalmente para dar lucro a alguém. E então se faça a seguinte pergunta: o que seria diferente nesse produto ou serviço, caso tivesse sido criado com o objetivo de realmente atender ao fim ao qual se destina, e não o de gerar o maior lucro possível?


Essas considerações pontuais e quase aleatórias que fiz até aqui representam apenas uma ínfima amostra do quanto hoje enfrentamos uma multiplicidade de terríveis problemas que parecem não ter solução, mas apenas porque estamos olhando para esses problemas por uma ótica distorcida e ineficiente, que é a ótica reducionista-mecanicista. Ao considerar esses mesmos problemas pela abordagem sistêmica, podemos começar a entender as suas causas mais profundas e, finalmente, tomar atitudes efetivas para gerar soluções.

E assim, depois de tantas piruetas do pensamento, voltamos à nossa questão inicial, que é utilizar o pensamento sistêmico para lidar com a crise do novo coronavírus. Já notou como desde o início da pandemia surgem pessoas propondo explicações simplistas, que sempre focam como ponto principal do problema “colocar a culpa em alguém”? Como o vírus se manifestou pela primeira vez em Wuhan, a maioria dessas pessoas se contenta em culpar a China e os chineses (ignorando, deliberadamente ou não, os relatos sobre o vírus da Covid-19 ter sido encontrado em amostras de 2019, antes do início da pandemia, na rede de esgoto de vários países, inclusive o Brasil). Outras pessoas, mais imaginativas, concebem uma teia de conspirações de origem desconhecida, que estaria manipulando a pandemia de forma a obrigar as pessoas a ficarem em casa, ou a reduzir a população, ou a acabar com a economia, ou até mesmo a implantar chips de controle mental (nessas horas quase sinto dó de ser um escritor de ficção, tendo como desafio bolar histórias ainda mais criativas que essas).

Todas essas “explicações” para a pandemia têm em comum o fato de serem norteadas pela visão mecanicista do mundo: se temos um problema, alguma parte do mecanismo é a culpada por esse problema... Contudo basta analisar rapidamente essas abordagens do problema para perceber que são úteis apenas para gerar medo e ódio nas pessoas, mas que na verdade não ajudam em nada a encontrar soluções. E é exatamente por esse motivo que essas “explicações” são tão atraentes e encontram tantos adeptos: se a culpa é do outro e não existe solução, não há nada que eu possa ou deva fazer para resolver o problema, certo? Posso continuar tranquilamente em minha zona de conforto...

Totalmente diferente é a abordagem sistêmica. Se tudo está conectado com tudo, todo problema passa por mim, assim como toda solução. O pensamento sistêmico não me permite jogar a culpa nos ombros de ninguém, mas me possibilita perceber as minhas responsabilidades individuais diante dos dilemas coletivos.

O que leva ao segundo sonho esquisito sobre o qual eu gostaria de falar aqui. Esse veio na forma de uma proclamação proferida por uma espécie de arauto real, com as palavras aparecendo em um pergaminho à medida em que ele ia lendo:

“PARA QUE A CIÊNCIA POSSA DE FATO NORTEAR A SOCIEDADE, É PRECISO QUE OS CIENTISTAS SE DESAPEGUEM DOS DOGMAS MATERIALISTAS E, PRINCIPALMENTE, DOS INTERESSES ESCUSOS QUE MOVEM A PESQUISA CIENTÍFICA.”


 

Acordei na madrugada do dia 21/01/21 com essas palavras reverberando na cabeça. Refletindo sobre elas, me dei conta da aberração que é vivermos em um mundo que separa ciência e religião em compartimentos completamente estanques. E o mais estranho é considerarmos essa divisão natural e até desejável, quando ela é apenas um momento histórico na jornada das eras.

Tanto a ciência quanto a religião deveriam ter por objetivo a busca pela Verdade ou, se você preferir, a busca pela Sabedoria. Contudo, graças justamente ao paradigma mecanicista do século XVII, a ciência deu uma espécie de “golpe de estado”, proclamando que a busca pela Verdade é uma prioridade exclusivamente sua. Desde então, sobrou para a religião o papel de ser algo como uma agremiação de dogmas, com as pessoas optando por essa ou por aquela religião de acordo com a sua preferência por determinado pacote de rituais e superstições.

Note que nessa cisão entre religião e ciência as duas saem perdendo. A religião, por um lado, desiste de buscar a Sabedoria e passa a fomentar apenas versões mesquinhas do universo e picuinhas com outras religiões. E a ciência, por outro lado, torna-se tragicamente cega para sua própria tendência ao dogmatismo. Só para dar um exemplo básico: afirmar que Deus não existe é tão dogmático quanto afirmar que Deus existe. Contudo muitos cientistas hoje, ainda atrelados à visão mecanicista, insistem em partir do pressuposto de que Deus não existe. E assim constroem uma ciência que toma como pilar a ideia de que a vida carece de qualquer sentido ou propósito espiritual, desvinculando o progresso científico de qualquer conexão com a espiritualidade. E é assim que temos uma ciência que não está voltada para a erradicação da fome e da miséria, como seria lógico imaginar, mas para o lucro (sempre o lucro) de algumas poderosas corporações, ao custo da devastação dos recursos naturais e da ameaça à nossa própria sobrevivência no planeta.

Diante disso, espero que já não pareça tão absurda a declaração de que a pandemia é a resposta biológica de Gaia aos desmandos dos homens mortais...

Quanto ao futuro, não me parece exagero dizer que estamos diante de graves perigos, que podem ou não nos conduzir a luminosas oportunidades. Penso que as principais dessas oportunidades passam pela adoção do pensamento sistêmico como novo padrão de abordagem da realidade.

Já virou um lugar comum dizer que a pandemia nos ensinou como tudo está conectado. Em 2021, mais do que nunca, essa percepção deve se converter em atitudes práticas. No momento em que escrevo esse texto, apenas quatro países detêm 75% das vacinas disponíveis. Contudo, a médio e longo prazo, não vai adiantar nada vacinar os Estados Unidos de cabo a rabo e deixar os brasileiros e os africanos sem se vacinar. Novas cepas do vírus já estão surgindo, comprometendo a eficácia de uma vacinação parcial apenas para alguns privilegiados.

Ou a salvação vem para todos, ou ninguém será salvo. Assim seja.

  


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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).

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