quarta-feira, 26 de abril de 2023

NEM TUDO O QUE É LEGAL É JUSTO... E NEM TUDO O QUE É JUSTO É LEGAL

 


Resenha do livro “MONTESQUIEU Volume 1”, da Coleção Os Pensadores

 

Eu tinha por volta de 20 anos quando fiz para mim mesmo a promessa de ler toda a coleção Os Pensadores. Na época eu achava que essa coleção representava o ápice da sabedoria, por reunir os maiores filósofos da civilização ocidental. Ao proferir essa promessa, não fazia ideia das guinadas que a busca pela verdade daria em meu caminho. Hoje percebo que qualquer tentativa de produzir conhecimento sobre o homem (filosofia, psicologia, sociologia etc.) que não envolva a espiritualidade será sempre parcial e incompleta. Feita essa ressalva, continuo entusiasmado em cumprir a minha promessa, lendo a cada ano de um a dois livros da coleção Os Pensadores.

Mas confesso que não estava tão empolgado assim para ler Montesquieu. Não entendia o porquê de ele ocupar dois volumes na coleção, pois a sua importância sempre me pareceu mais histórica que de fato filosófica. É inegável que “Do Espírito das Leis”, obra-prima de Montesquieu, teve uma grande influência em muitos países ao propor a famosa separação dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário. Contudo eu imaginava que boa parte do livro já deveria estar ultrapassada, justamente por fazer referência a um contexto social e político bem diverso do que vivemos hoje.

Essa expectativa foi confirmada. Durante as primeiras 50 ou 100 páginas de “Do Espírito das Leis”, tive a impressão de estar lendo algo como um tratado político da Terra Média ou de Nárnia, uma obra de pura fantasia, que não se aplicava de modo algum à minha realidade.

Essa sensação de irrealidade foi reforçada pela informação, dada na introdução da obra, de que Montesquieu muitas vezes ajustava ou até adulterava dados históricos e citações, de forma a que encaixassem melhor em suas teorias. Então a leitura segue em meio a uma grande insegurança, pois a todo momento ele cita episódios de povos antigos como comprovação de suas ideias, e não há como saber (sem uma extensa e trabalhosa pesquisa) o que de fato ocorreu ou não como ele está contando.

É verdade que Montesquieu é um pensador habilidoso e muito elegante, que se expressa com grande vivacidade. Então existe um prazer estético e até literário em ler frases como:

“Todo homem que falta com a honra é alvo das reprovações até mesmo dos que não a têm.”

“O luxo sempre é proporcional à desigualdade das fortunas.”

“Quanto mais houver homens reunidos, tanto mais esses serão fúteis e sentirão nascer neles o desejo de se notabilizar por pequenas coisas.”

“Se deixardes em liberdade os movimentos do coração, como podereis conter as fraquezas do espírito?”

“Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar.”

“O mal decorre da ideia de que é necessário vingar a Divindade. Porém, deve-se honrar a Divindade e nunca vingá-la.”

“O despotismo é tão terrível, que se volta mesmo contra os que o praticam.”

“Quem possui o dinheiro é sempre o senhor do outro.”

“Um cidadão já adquire uma superioridade muito grande sobre outro em lhe emprestando um dinheiro que esse último só tomou emprestado para dele se desfazer, e consequentemente, não mais o tem. Que aconteceria se, numa república, as leis aumentassem ainda mais essa servidão?”

“Amiúde, os que, com um espírito inquieto, estavam na direção dos negócios sob o governo do príncipe, julgaram que as necessidades do Estado eram as necessidades de suas almas insignificantes.”

“Assim como todas as coisas humanas têm um fim, o Estado ao qual nos referimos perderá sua liberdade, perecerá. Roma, Lacedemônia e Cartago pereceram completamente. Ele extinguir-se-á quando o poder legislativo for mais corrompido que o executivo.”

Só que a situação muda de figura quando chegamos à página 277, onde Montesquieu começa a expor suas ideias sobre a influência do clima na natureza dos povos:

“Os povos das regiões quentes são tímidos como os anciões; os das regiões frias são corajosos como os jovens.”

Em resumo, os habitantes de regiões frias são virtuosos, corajosos, inteligentes e capazes, e os habitantes de regiões quentes são ineptos, covardes, luxuriosos e preguiçosos. Imagino o quanto essas ideias de Montesquieu serviram e continuam servindo a projetos imperialistas...

Algumas páginas adiante, o caldo entorna de vez, no livro décimo-quinto, quando Montesquieu relaciona suas teorias do clima à escravidão:

“Se eu tivesse que defender o direito que tivemos de escravizar os negros, eis o que eu diria:...”

Segue-se página e meia de abominações que li com incrédulo horror. Fiquei tão chocado que fui para a Internet ver o que se dizia sobre essas falas tão tristes e perniciosas. Cheguei a encontrar uma tentativa de passação de pano, onde se dizia que Montesquieu havia sido “irônico” nesse trecho. Pois bem. Não chego ao ponto de cometer o anacronismo de chamar Montesquieu de racista, mas acho totalmente incompatível que um livro com essas frases esteja arrolado no panteão dos mais elevados saberes da humanidade, em minha tão amada coleção Os Pensadores.

Então me dei conta que a “minha” coleção Os Pensadores foi comprada há 30 anos, e de lá para cá o mundo mudou muito. Fui conferir versões mais recentes da coleção (houve várias ao longo dos anos) e encontrei essa da Folha onde Montesquieu não aparece:

https://pensadores.folha.com.br/


Aliás, a maioria dos autores listados nessa versão da Folha não está presente na versão que possuo. O que dá uma boa medida da durabilidade dos ensinamentos atemporais dos maiores sábios da história...

Só sei de uma coisa: não pretendo ler o volume 2 de Montesquieu. O que não significa que a leitura do volume 1 foi uma perda de tempo. Ao ler tantas páginas debatendo minúcias legais a respeito da escravidão, fui tomado pela óbvia constatação de que as leis raramente se ocupam do que é justo, sendo antes de mais nada a legitimação de determinados interesses.

O que me faz voltar ao início dessa resenha, quando falei da carência que os saberes humanos hoje têm de levar em conta a espiritualidade. E fiquei imaginando que mundo nós teríamos se todas as nossas leis tomassem como base precípua a chamada “Regra de Ouro” (também chamada de “Ética da Reciprocidade”), que está presente de uma forma ou de outra em todas as religiões:

“Trate os outros como gostaria de ser tratado; não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você.”



 

 

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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).

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