Resenha do livro “A
OBRA DE ARTE NA ERA DE SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA”, de Walter Benjamin
Há muitos anos que eu queria ler esse pequeno grande livro, verdadeiro divisor de águas da filosofia contemporânea. Ao encontrar um exemplar no Cantinho dos Livros (espaço para doação e troca de livros no Mercado Municipal de Itapuã), fiquei tão empolgado que dali a dez minutos já estava lendo! E logo no início já fui surpreendido por essa incrível profecia de Paul Valéry:
“Tal como a água, o gás e a corrente elétrica vêm de longe para as nossas casas, atender às nossas necessidades por meio de um esforço quase nulo, assim seremos alimentados de imagens visuais e auditivas, passíveis de surgir e desaparecer ao menor gesto, quase que a um sinal.”
Considerando que essa citação data de 1936 (mesmo ano em que o ensaio de Walter Benjamin foi publicado pela primeira vez), é de fato assombroso que Valéry tenha conseguido vislumbrar com tanta antecedência nossa atual realidade de instagrams e tik toks...
E isso é apenas um detalhe a mais para abrilhantar esse ensaio de Walter Benjamin, no qual ele formula uma interessante (e até hoje relevante) teoria a respeito da arte, considerando o contexto da sociedade tecnológica que possibilita fabricar reproduções em série de uma obra de arte:
“Na época das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é sua aura.”
Crucial para essa teoria é o conceito de “aura”, que é assim definido por Benjamin:
“A única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela esteja.”
O que nos leva ao termo hic et nunc [aqui e agora], igualmente importante na teoria desenvolvida por Benjamin:
“À mais perfeita reprodução falta sempre algo: o hic et nunc da obra de arte, a unidade de sua presença no próprio local onde se encontra.”
Dizendo isso em termos mais simples, vamos considerar a célebre pintura da “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci. A obra original é uma pintura a óleo de 1503, concebida e executada com extrema habilidade. Justamente por conta de sua fama, contudo, a figura da Mona Lisa já passou por incontáveis reproduções, releituras etc. Na época em que da Vinci pintou sua obra-prima, a única maneira de ver a Mona Lisa seria ir até onde o quadro estava. Hoje, você pode ter uma camiseta ou uma caneca estampada com a Mona Lisa, para não mencionar a infinidade de imagens disponíveis na Internet. Isso tudo acaba gerando um esvaziamento da “aura” da Mona Lisa.
Vamos pensar em outro exemplo, mais próximo de minha própria vivência. Se você vivesse na Idade Média, a única maneira de ouvir música seria ir até onde ela estivesse sendo tocada naquele momento (muito provavelmente em uma igreja). Contudo a partir da invenção do fonógrafo por Thomas Edison, em 1877, tornou-se possível ouvir qualquer música gravada no conforto de sua casa. O interessante é que a tecnologia que possibilita a reprodução das obras de arte não para de evoluir: do fonógrafo passamos para o vinil, deste para o CD e daí para a música que dispensa um meio material de reprodução, disponível na Internet. No decorrer de minha curta vida humana, vivenciei uma intensa perda da “aura” da música em nossa sociedade. Durante minha adolescência, os amigos se reuniam para ouvir juntos LPs raros, que eram compartilhados como verdadeiros tesouros. Hoje toda a música produzida pela humanidade está disponível a um clique no Google ou no YouTube, mas, paradoxalmente, o entusiasmo em ouvir música parece diminuir mais a cada dia.
É como se algo essencial a respeito da arte estivesse faltando. Isso foi diagnosticado lá atrás por Walter Benjamin:
“Desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subvertida.”
Uma das partes mais fascinantes desse livro é a reconstituição histórica da função da arte na sociedade, desde os tempos da caverna até a modernidade – e além:
“Sabe-se que as obras de arte mais antigas nasceram a serviço de um ritual, primeiro mágico, depois religioso. Então, trata-se de um fato de importância decisiva a perda necessária de sua aura, quando, na obra de arte, não resta mais nenhum vestígio de sua função ritualística.”
“A produção artística inicia-se mediante imagens que servem ao culto. Pode-se admitir que a própria presença dessas imagens tem mais importância do que o fato de serem vistas. O alce que o homem figura sobre as paredes de uma gruta, na idade da pedra, consiste num instrumento mágico.”
“Na medida em que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, as ocasiões de serem expostas tornam-se mais numerosas.”
“Com a fotografia, o valor de exibição começa a empurrar o valor de culto – em todos os sentidos – para o segundo plano.”
“A massa é matriz de onde emana, no momento atual, todo um conjunto de atitudes novas com relação à arte. A quantidade tornou-se qualidade.”
“Sempre foi uma das tarefas essenciais da arte a de suscitar determinada indagação num tempo ainda não maduro para que se recebesse plena resposta.”
“Segundo André Breton, a obra de arte só tem valor na medida em que agita os reflexos do futuro.”
O futuro da arte, hoje, nos parece chegar através do cérebro positrônico de uma Inteligência Artificial. É possível existir aura em uma obra de arte criada por um ser desprovido de alma? Veremos muito em breve.
Quase no final do livro, temos um contraponto à precisa profecia de Paul Valéry, que aparece na forma dessa dura e equivocada crítica de Georges Duhamel ao cinema:
“Trata-se de uma diversão de párias, um passatempo para analfabetos, de pessoas miseráveis, aturdidas por seu trabalho e suas preocupações... um espetáculo que não requer nenhum esforço, que não pressupõe nenhuma implicação de ideias, não levanta nenhuma indagação, que não aborda seriamente qualquer problema, não ilumina paixão alguma, não desperta nenhuma luz no fundo dos corações, que não excita qualquer esperança a não ser aquela, ridícula de, um dia, virar star em Los Angeles.”
O cinema acabou se revelando capaz de ir bem mais longe que o previsto por Duhamel. Chega a ser reconfortante, em meio a tantas previsões tão sombrias e tão precisas, ver que alguma coisa de imprevisto ainda nos reserva o porvir.
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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor
de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI -
Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).
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Instagram: https://www.instagram.com/prosaepoesiadefabioshiva/
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ESCRITORES PERGUNTAM, ESCRITORES RESPONDEM
Escrever para quê?
Doze escritores dos mais
diversos estilos e tendências, cada um de seu canto do Brasil, reunidos para
trocar ideias sobre a arte e o ofício de escrever. O resultado é este livro: um
bate-papo divertido e muito sério, que instiga o leitor a participar ativamente
da reflexão coletiva, investigando junto com os autores os bastidores da
literatura moderna. Uma obra única e atual, recomendada a todos os que amam o
mundo dos livros.
Disponível no link abaixo,
leia e compartilhe:
http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5890058
Obrigada pela partilha!!
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Fim de semana chegou. Feliz São João...
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Beijos, e um excelente fim de semana.
Gratidão, querida!
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