Resenha do livro “A
MANEIRA NEGRA”, de Rafael Cardoso
“Maneira-negra” é uma antiga técnica de gravura, que consiste em trabalhar em uma chapa de metal para gerar uma impressão inteiramente negra. Uma vez que Roman Noir (literalmente “romance negro”) é um estilo clássico do romance policial, é de fato uma bela sacada de Rafael Cardoso ter como mote de sua história policial uma gravura feita à maneira-negra.
A trama se inicia com uma morte que, se não pode ser considerada um assassinato, é pelo menos um homicídio culposo: um erudito especialista em obras de arte tem um ataque cardíaco ao ver sua vasta biblioteca sendo incendiada por bandidos. Qualquer amante de livros é capaz de se identificar com o sofrimento desse personagem! E é essa morte sob tortura, com requintes de crueldade, que leva o protagonista Pedro a investigar se a valiosa gravura à maneira-negra que o falecido deixou sob seus cuidados é uma falsificação. Em suas investigações, Pedro percorre os meandros do mercado de arte no Rio de Janeiro, enfrenta policiais corruptos e marchands mafiosos e, de quebra, ainda tem tempo de se apaixonar.
Apesar do tema erudito, a prosa de Rafael Cardoso é fluida e despretensiosa, proporcionando uma agradável experiência de leitura. Penso ter notado uma forte influência de Rubem Fonseca, que não chega a configurar uma mera imitação por conta do acréscimo de interessantes detalhes pessoais. Esses detalhes, ao meu ver, foram o elemento mais curioso dessa leitura. O autor expõe e reflete sobre preconceitos arraigados na sociedade brasileira, mas faz isso pelo ponto de vista de seu protagonista, um homem branco de classe média alta, nascido e criado na Zona Sul do Rio de Janeiro.
O evento catalisador se dá quando Pedro descobre que a jornalista Carolina, com quem ele está iniciando um namoro, é filha de uma antiga empregada doméstica de sua família. Essa descoberta traz à tona os preconceitos tão sedimentados em nossa cultura, ainda que quase sempre inconscientes ou não reconhecidos abertamente. Ao tomar consciência de seus preconceitos, o herói de “A Maneira Negra” faz um incômodo convite para que seus leitores façam o mesmo.
Só que esse livro foi publicado em 2000, o que mostra o quanto o Brasil e o mundo mudaram desde então. Na época, essas reflexões podem ter sido consideradas “sensíveis”, “humanas” e até “corajosas”. Hoje, penso que despertam um imprevisto constrangimento, por conta de questões ligadas (erroneamente) ao conceito de “lugar de fala”, que por sincronicidade foi o tema de uma ótima leitura que fiz recentemente: “O Que É Lugar de Fala?”, de Djamila Ribeiro (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2023/05/aprender-o-que-e-lugar-de-fala-e.html).
Esse embaraço fica ainda mais evidente em “Blecaute”, conto que acompanha a novela “A Maneira Negra”, em que novamente um reconhecimento faz emergir preconceitos. Dessa vez o protagonista Fabrício esbarra na travesti Juju, que ele reconhece como Julinho, seu antigo colega da escolinha de futebol. Não há nada de errado ou preconceituoso nessa história (e nem na anterior), mas o mero fato de o ponto de vista ser o de um homem cis hetero coloca a história “sob suspeita”, diante do intenso patrulhamento ideológico que vivemos hoje. Notem bem que não estou criticando, nem aplaudindo, mas só observando. Existe uma pressão social muito grande, principalmente nas redes, para que temas sensíveis como racismo e homofobia sejam abordados por alguns vieses exclusivos, sob pena de imediato “cancelamento”.
Eu mesmo, como escritor, passei por uma situação semelhante. Meu romance “Favela Gótica” (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2019/01/favela-gotica-fabio-shiva.html) traz uma breve cena que reproduzo na íntegra:
“Farofa disponibiliza algumas cadeiras metálicas, dessas dobráveis, que ficam alinhadas ao lado da barraca. São fortes o suficiente para suportar o peso de Suzy Fofurinha, jogada na cadeira com o olhar perdido no nada. É um travesti com mais de dois metros de altura. O copo de plástico esquecido em sua mão imensa parece minúsculo. Pela cor da bebida, é suco de pêssego com vodka, seu drink favorito. E pela cara que Suzy está fazendo, o melhor é nem chegar muito perto.”
Essa cena foi inspirada em um episódio real que presenciei. O problema foi que usei o artigo masculino: “um travesti”. Esse livro foi publicado em janeiro de 2019, quando ainda não era consenso e óbvio que “travesti é ela”. E essa cena de um parágrafo foi uma das primeiras a serem escritas, em 2016. E em 2022 fui surpreendido com a resenha de uma jovem leitora, que me chamou de homofóbico por conta desse parágrafo. Sou grato a essa leitora, que me fez atentar para esse detalhe que espero corrigir em uma próxima edição. Mas também lamento que ela não tenha atentado em um outro detalhe que me deixa especialmente feliz a respeito desse livro: “Favela Gótica” é um romance brutal, repleto de atrocidades, e um de seus raros momentos de ternura acontece através de um relacionamento homoafetivo.
Enfim, acho todas essas ebulições sociais muito interessantes, e faço votos para que elas tragam a reboque o fim do mundo como o conhecemos – e, com fé em Deus, um mundo novo. Confio em que somos capazes não só de destruir essa sociedade podre que nós mesmos construímos, mas também, principalmente, de erguer uma nova bem melhor e muito mais feliz.
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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor
de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI -
Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).
Facebook: https://www.facebook.com/sincronicidio
Instagram: https://www.instagram.com/prosaepoesiadefabioshiva/
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FAVELA GÓTICA liberado na íntegra no site da Verlidelas Editora:
https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica
O livro Favela Gótica fala sobre “a monstruosidade essencial do cotidiano”, em uma história cheia de suspense, fantasia e aventura. Ao nos tornamos mais conscientes das sombras que existem em nossa sociedade, seremos mais capazes, assim como a protagonista Liana, de trilhar um caminho coletivo das Trevas para a Luz.
A versão física de Favela Gótica está à venda no site da Verlidelas, mas o autor e a editora estão disponibilizando gratuitamente, inclusive para download, o PDF de todo o livro.
Fique à vontade para repassar o arquivo para amigos e parentes.
Leia ou baixe todo o livro no link abaixo:
https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica
Link do livro no SKOOB:
https://www.skoob.com.br/livro/840734ED845858
Book
trailer
Entrevista sobre o livro na
FM Cultura
Acredito que seja um livro muito interessante de ler
ResponderExcluirCumprimentos poéticos
Gratidão pelo comentário e por essa energia boa! Viva a Poesia!
ExcluirFabulosa partilha. Obrigada :))
ResponderExcluir.
Intervalo feito dalguma amargura...
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Beijos. Muita saúde, e um excelente fim de semana.
Gratidão, querida! Bjs!
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