domingo, 17 de agosto de 2025

QUAIS AS CARACTERÍSTICAS DE UMA BOA HISTÓRIA INFANTIL?

 


Resenha do livro “MARCELO, MARMELO, MARTELO”, de Ruth Rocha

Peguei esse livro para ler com a intenção deliberada de responder a essa pergunta: o que torna um livro infantil bom (ou mau)? Já conhecia a fama de Ruth Rocha como excelente contadora de histórias para crianças, e esse livro em especial, “Marcelo, marmelo, martelo”, com seu título lúdico e instigante, despertou a minha curiosidade. Então mergulhei na leitura já sabendo de antemão que iria encontrar um bom exemplo de literatura infantil. Restava descobrir o que exatamente é que faz as crianças (e os adultos) gostarem desse livro.

O primeiro ponto salta aos olhos, literalmente: um bom livro infantil deve ter boas ilustrações. Por boas ilustrações, entendo que devam ser atrativas e, principalmente, possuir “personalidade”. Há desenhos tecnicamente muito bem feitos, mas que carecem desse componente essencial e difícil de definir: o carisma. Esse é ainda o caso, penso eu, de muitas ilustrações geradas por IA (provavelmente algo que será aprimorado em um futuro próximo). Aqui, em “Marcelo, marmelo, martelo”, temos nos desenhos de Mariana Massarani um perfeito exemplo do que devem ser ilustrações para um livro infantil: bem coloridas, muito expressivas e divertidas e esbanjando o estilo pessoal da ilustradora, facilmente reconhecível.

Uma segunda característica importante é a linguagem, que deve ser dosada na medida certa, para estimular a curiosidade e o aprendizado da criança de forma divertida. Uma linguagem muito rasa ou infantilizada torna a leitura inócua e tediosa, mas um vocabulário muito rebuscado pode deixar a leitura proibitiva ou mesmo inacessível para a criança. Percebo essa barreira da linguagem especialmente em obras publicadas há trinta anos ou mais, lamento dizer, por conta da redução do vocabulário que vem ocorrendo de lá para cá. Um triste exemplo é o da sensacional Coleção Vagalume, que comecei a devorar aos 8 anos de idade (e que continuo lendo até hoje): muitos desses livros maravilhosos, temo, não seriam apreciados pelas crianças de hoje, por conta do vocabulário utilizado.

A terceira característica é a história em si que está sendo contada, a trama, o enredo. É preciso que a história apresente um problema que interesse à criança, e que esse problema seja adequadamente resolvido no decorrer da história. E nesse sentido a trama de “Marcelo, marmelo, martelo” só poderia ser chamada de exemplar: a curiosidade natural do menino Marcelo o leva a questionar o nome das coisas: por que ele se chama “Marcelo”, e não “martelo” ou “marmelo”? Isso leva a situações engraçadas e também potencialmente perigosas quando Marcelo decide chamar as coisas pelo nome que ele mesmo escolher, e não pelo nome adotado pela convenção. E o clímax acontece quando o menino pede ajuda para uma situação de emergência: “Papai, papai, embrasou a moradeira do Latildo!” A demora de seus pais entenderem o que ele quer dizer (e tomarem as providências para apagar o incêndio na casinha do cachorro) faz Marcelo perceber a importância da comunicação, que implica em utilizar um código comum para a compreensão da mensagem trocada entre emissor e receptor. Uma verdadeira aula de Teoria da Comunicação, apresentada de forma simples, direta e engraçadíssima! Irresistível para crianças de todas as idades.

Por fim, a quarta e talvez principal característica, em minha opinião, é o que pode ser chamado de “voz de criança”. Com essa expressão quero dar testemunho de que as melhores histórias infantis que li (com destaque para “O Menino Maluquinho” de Ziraldo) não são histórias contadas por um adulto, nem mesmo por um adulto fingindo ser uma criança. Nas histórias infantis realmente maravilhosas e fascinantes, o autor consegue de algum modo acessar a sua criança interior, e é essa criança que conta a história. Para demonstrar o que quero dizer com “voz de criança”, vou utilizar como exemplo um experimento psicológico com pessoas hipnotizadas que passaram pela chamada “regressão de idade”. Nesse experimento foram constatadas diversas inconsistências entre o comportamento de adultos regredidos pela hipnose à condição de crianças e o de crianças verdadeiras. Uma dessas inconsistências: o adulto regredido está brincando com as mãos na terra, quando alguém lhe oferece um bombom. Sem hesitar, ele pega o doce com as mãos sujas e o enfia na boca. Já uma criança de verdade, na mesma situação, limpa as mãos na camisa antes de pegar o doce... Ou seja, não basta imaginar o que uma criança faria ou diria, é preciso ser uma criança ao contar uma história para crianças. Não sei se consigo explicar melhor que isso, mas acho que nem é preciso: essa é uma daquelas doces verdades que “não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. E nesse quesito, mais uma vez, palmas para Ruth Rocha!


   

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Fabio Shiva é músico, escritor e produtor cultural. Fundador da banda Imago Mortis. Coautor e roteirista de ANUNNAKI - Mensageiros do Vento, primeira ópera rock em desenho animado produzida no Brasil. Publicou livros de gêneros diversos: romance policial, ficção especulativa, contos, crônicas, infantojuvenil e poesia, além de várias antologias poéticas como organizador. Ghost Writer com seis livros publicados. Idealizador e proponente de diversos projetos aprovados em editais públicos, como Oficina de Muita Música!, Gaia Canta Paz, Pé de Poesia, Doce Poesia Doce, Poesia de Botão, Gincana da Poesia e P.U.L.A. (Passe Um Livro Adiante). Autor convidado na Bienal do Livro Bahia 2022 e da FLIPO Castro Alves 2025. Desde 2023 atua à frente da Natesha Editora.

 

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