Esse livro é uma coletânea de crônicas escritas e publicadas quando Vinicius atuava como jornalista. A primeira parte dela apresenta textos do período de 1941 a 1953 e a segunda, de 1964 a 1966. As crônicas são apresentadas por ordem cronológica o que permite ao leitor acompanhar o pensamento do poeta “disfarçado em cronista desde a II Guerra Mundial até as calamidades públicas da atual conjuntura”, palavras do autor no prefácio da 1ª edição desse livro, em 1966, época em que o Brasil vivia o regime militar.
Vinicius de Moraes em imagem de 1960 (fonte: Folha Ilustrada)
Algumas crônicas são irônicas e outras falam de amor e nos permitem entrever, como alguém disse um dia, e eu não me recordo quando e onde, “o seu desejo é unir a arte e a vida.”
Apesar de ser um livro de crônicas Vinícius faz a abertura com o poema “A Brusca Poesia da Mulher Amada” escrito para sua esposa de então, Nelita (a 5ª das 9 que teve), a quem o livro é dedicado.
Nelita & Vinicius
Transcrevo aqui uma delas:
O Delírio do Óbvio
Conheci-a num coquetel no seu apartamento em Roma: uma mulherzinha intensa, minúscula, arredondada. Pensei imediatamente em dar-lhe um lugar de destaque na coleção de gnomos humanos de jardim, que venho selecionando há um ano e já vai bem adiantada. Devia andar pelos 45, mas 45 bem cuidados, a julgar pelo fundo da pele, pelo dorso das mãos e pelo colo almofadado, dando apenas a entender. Um colo arfante, naturalmente.
Olhou-me com olhos úmidos e sua boca rasgada abriu um sorriso de anúncio. O tom com que me falou foi de um recolhimento quase religioso:
- Ah, é o poeta...
Fiquei com vontade de engrossar de saída e responder: “- Não, é o cobrador da Light...”, mas me contive. Ela suspirou fundo – coisa que, aliás, deveria fazer num crescendo assustador – e sem mudar de tom, mas endurecendo ligeiramente as pupilas, voltou-se para minha mulher:
- Que coisa divina ser a companheira de um poeta, a sua musa inspiradora! E que responsabilidade... Porque os poetas, em geral, são pródigos de amor: não é, poeta?
Quis reagir, mas inutilmente. Sorrimos "aquele" sorriso, e enquanto minha mulher fingia procurar qualquer coisa na bolsa, eu balbuciei um “- É...” que merecia ser gravado, pois jamais ouvi nada tão alvar. Ela acertou o vestido nas ancas, num gesto muito característico das mulheres que ainda não desistiram de todo, e aproximando o rosto do meu, segredou-me conivente:
- Aposto que já fez sofrer muitos corações femininos...
Assumi, sem saber bem o que dizer, um ar modesto de “mais ou menos”, e já meio baratinado pela ação irradiante de tanto óbvio, respondi sem tirar nem pôr o que aqui vai:
- Qual nada... A senhora está exagerando... São seus bons olhos... Eu até que não sou disso...
Ela fixou-me ardentemente, numa expressão só-eu-sou-capaz-de-compreender-a-alma-dos-poetas e logo, desviando o olhar do meu para ir perdê-lo na distância, arrematou:
- Dizer que os cientistas estudaram tanto para enviar ao espaço os cosmonautas... E estas mãos (ela tomou-me uma com infinita delicadeza) num simples dedilhar de algumas cordas, nos transportam logo ao céu! Fiquei com vontade de protestar, de dizer-lhe que estava havendo um erro de pessoa, que ela queria provavelmente se referir a Baden ou Bonfá; mas ela num súbito arroubo que conseguiu elevar-lhe a estatura de dois centímetros, dirigiu-se a minha mulher não sem ameaça velada na voz:
- Você sabe a responsabilidade que tem, menina! – ser a companheira de um poeta, de um compositor? Você sabe que ele não se pertence, é um patrimônio de todos nós? Você sabe o que é ser a musa de um poeta? Minha mulher, que é muito mais Manuel Bandeira, e tal já me fez ver, chegou a olhar-me com uma certa surpresa, enquanto eu, no auge da covardia, procurava abrandar a sagrada cólera da Begum do Lugar Comum, como a passamos a chamar depois:
- Ela é boazinha, ouviu...
E sem saber mais o que fazer, ofereci-lhe um cigarro, que ela declinou com seca compunção:
- O poeta vai me perdoar, mas uma mulher (e fuzilou a minha com os olhos) deve ter na boca um gosto de amor e não de fumo...
- Falou pouco, mas bem...
Era a rendição. Ela sorriu deliciada:
- Ah! Poeta... As mulheres como eu só falam a linguagem do coração...
Na despedida tomou-me familiarmente o braço até a porta, sem dar a menor importância à “minha musa”.
- Agora que já sabe o caminho, volte sempre. O ninho é pequeno mas o afeto é grande. Eu serei sempre... toda ouvidos...
A porta fechada, descendo as escadas para a rua, eu me surpreendi com horror dizendo à minha “companheira”:
- Que tal se fôssemos ao “Alfredo”, comer um “fettuccini al triplo burro”?
Sua obra não se restringiu aos livros, foi para o teatro e o cinema. Suas músicas foram gravadas por muitos cantores. Mas quer nos livros, teatro, cinema e música o que nunca faltou é a poesia que fala alto aos corações. Encerro este post com uma delas.
Ternura
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
bj da angel
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