sexta-feira, 9 de março de 2012

O GATILHO – Arthur C. Clarke e Michael Kube-McDowell


Um livro que supera completamente as expectativas do leitor. E as minhas não eram pequenas ao começar a ler: esperava um excelente thriller de ficção científica que fosse capaz, com muita engenhosidade, de prender o leitor durante as quase 600 páginas em letra miúda.

Não fui decepcionado e recebi o que estava esperando. O bônus que surpreendeu foi encontrar nesta obra tantas e tão profundas reflexões sobre a natureza humana e sobre as falhas intrínsecas de uma sociedade baseada no medo e na força.

A história começa com a descoberta acidental de um dispositivo que provoca a detonação de qualquer explosivo a base de nitrato -  o tal “Gatilho”. Como praticamente todas as munições e bombas da indústria bélica são feitos a partir do nitrato, o Gatilho acaba se tornando a anti-arma definitiva, a “arma para acabar com todas as armas”.

Seria o prenúncio do fim de todas as guerras? Uma nova era de paz e harmonia para a humanidade? Talvez resolver a questão da violência não seja tão simples assim...

O livro foi publicado em 1999, quando Arthur C. Clarke já avançava em sua oitava década de vida. Uma bela obra de maturidade, que contou com o auxílio certamente não pequeno de Michael Kube-McDowell, escritor especializado em histórias passadas em um futuro próximo e com um enfoque humano.

E assim é em “O Gatilho”. O futuro descrito parece tão próximo que poderia estar a meros cinco ou dez anos à frente. Na verdade, a história é tão bem escrita e convincente que chega a parecer não-ficção, um romance-reportagem sobre amanhã ou depois. Vou demorar a me convencer de que o Gatilho ainda não foi inventado na vida real.

Fora isso, algumas previsões interessantes. A mais bem-vinda delas é a do fim da era de comunicação de massas. Com a propagação da Internet e a absorção da televisão e das outras mídias pela rede, as grandes emissoras são extintas, dando lugar a uma infinidade de canais que pulverizam a audiência em diversos segmentos de interesse. Uma “profecia” que nós podemos muito bem chegar a testemunhar. Vale lembrar que foi o mesmo Clarke quem “profetizou” a era das comunicações via satélite.



Algumas passagens do livro são realmente marcantes. Eis algumas delas:

* Sobre a realidade quântica:

“A realidade em si provou ser a maior e mais fascinante ilusão de todas – a matéria sólida era em sua maior parte espaços vazios, objetos estacionários estavam em constante movimento, linhas retas na verdade eram curvas, a maior parte do universo era invisível, a matéria criava a si mesma espontaneamente a partir do vácuo, o tempo era uma variável, e cada resposta levava a mais perguntas.” (276)


“Mas na visão de Brohier [um dos cientistas que criou o Gatilho], a matéria elementar havia desaparecido, exposta como uma confortável visão em concordância com a evidência dos sentidos. A matéria era uma mera derivação, um fenômeno subordinado. As essências fundamentais eram energia e informação. A informação molda a energia em uma forma, assim como a vontade molda a volição em um propósito. Altere a informação e a forma é alterada, enquanto a substância permanece inalterada.
Era, pensou Brohier, como se a informação fosse a vontade do universo, impondo ordem à substância do universo – ordem que se seguiu ao despertar da espontânea e explosiva transformação erroneamente tomada como o momento da criação. A energia era mais antiga que a informação, mas sem forma e sem tempo desprovida da informação – mais antiga que a matéria, mas indefesa e inútil sem a matéria. Nesta nova e provocante visão, o Big Bang foi não o nascimento do universo, mas o nascimento de sua consciência.”


Sobre as responsabilidades da ciência:

“No final das contas, não foi a ciência que transformou o mundo, e sim o casamento entre a tecnologia e o capitalismo. Os ignorantes podiam culpar a ciência pelos males e sofrimentos da era moderna, mas esse era um caso de confusão de identidade – nenhum cientista ou pesquisador jamais poluiu um leito d’água com PCB, ou executou um aborto no terceiro trimestre [felizmente ainda não chegamos a esse ponto!] ou cancelou o seguro de alguém baseado em uma varredura genética, ou transformou a Internet em um subterfúgio para espionar a vida privada.” (444)

Sobre a violência na indústria do entretenimento:

“Durante esse tempo, eu permiti de boa vontade que as imagens de assassinatos de dezenas de milhares de seres humanos entrassem em meus olhos e em meus pensamentos. (...)
Estou embaraçado em lembrar de quantas vezes eu sentei aqui e recomendei que vocês pagassem dinheiro a alguém para empurrar essas mesmas imagens brutais em seus pensamentos. Mas estou muito mais penalizado pela realização de que, com o passar dos anos, eu me tornei tão insensível à violência que com freqüência cada vez maior eu sentei na sala de vídeo eu assistindo o sangue voar e os corpos caírem e fiquei entediado.
Ao longo do caminho, eu me descartei das críticas que diziam que a indústria de filmes transformou o assassinato em um esporte para espectadores. Este é um mundo violento, eu dizia para mim mesmo, e esses filmes só espelham a realidade.
Eu dispensei as acusações de que esses arrasa-quarteirões de ação alimentam as fantasias paranóicas de poder e são uma pornografia da violência. Esses filmes são como caricaturas, eu dizia a mim mesmo, e ninguém poderia levá-los a sério.
Eu sacudi a cabeça à idéia de que a mutilação e execução de pessoas por entretenimento eram produtos de um vicioso sexismo. Eu dizia para mim mesmo que o verdadeiro sexismo era vender ingressos para ver jovens atrizes com os seios de fora.
Eu estava errado. Eu estava errado o tempo todo.
Nossos entretenimentos dependem de nossa voluntária suspensão da descrença. Nós iludimos a nós mesmos a pensar que o que estamos vendo e ouvindo é real. Pois bem, funcionou bem demais. Funcionou tão bem que nós nunca mais conseguimos tirar essas imagens de nossas cabeças. Quando eu imagino se lembrei de trancar a porta dos fundos, não é a realidade de minha vida que me faz saltar da cama e verificar – são os demônios e os assassinos loucos de mil fitas de terror e mistério, ainda vivos no fundo de minha mente.” (555)


O final é o único ponto do livro que está abaixo do espetacular, por ser um tanto previsível. Ao menos é rápido o bastante para não prejudicar a grandiosidade da obra.

Inexplicavelmente, parece que este livro ainda não foi lançado em português, pois não encontrei referências na net. O título original é “The Trigger”.

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