domingo, 3 de junho de 2012

DISTÚRBIO, de Valentina Silva Ferreira


   Classifico esse texto da Valentina como um drama psicológico que beira ao terror. Em certos momentos, é terror mesmo. E de que forma não classificar a vida da personagem Rossana como aterrorizante? Coloquemo-nos no lugar dela: o que você faria se, aos treze anos, sua mãe obrigasse você a se alimentar o menos possível, fazer exaustivos exercícios, vestir-se como uma adulta, tudo isso para ter o que ela não teve: uma carreira de modelo (além de um certo ciúme, por ver que a filha tem mais beleza que ela)? E o pior: e se seu pai, que deveria ser seu maior amigo, aquele que deveria proteger você de tudo o que a machucasse, fizesse justamente o contrário, lhe ferisse da pior forma, destruindo sua inocência? É o que acontece com Roxie. Ela tem mais três irmãos, menores que ela, a quem tenta proteger das insanidades materna e paterna. Por enquanto Perpétua, a mãe, aplica a rotina severa somente à filha mais velha, pois crê que a menina lhe deve isso, de alguma forma, cumprindo o destino que ela não pode quando adolescente. E é tão cega à realidade que não vê o interesse do marido pela própria filha... E quando percebe... Adivinhem a reação?


   Infelizmente, Rossana não tem a quem recorrer, diante das ameaças do pai. Pode fugir, um dia ou outro, mas o terror ronda seus sonhos, o desejo de que tudo seja um pesadelo, do qual ela vai acordar. Um dia algo bom irá acontecer e tudo de ruim vai terminar. Nem que seja morrendo, como ela acaba por desejar. Talvez o único jeito seja fugir. Fugir de uma forma que ela sabe que é errada, mas... Ela tem apenas treze anos...

   Fiquei por meses e meses em dúvida se devia ou não comprar o livro, por conta de tudo isso que relatei. Achei interessante a capa, remetendo à infância, mas uma infância sombria, que deixa bem claro que a história não é um conto de fadas com final muito feliz. A diagramação ficou caprichada, as letras do título e os números de página foram feitos com uma fonte diferenciada. Quanto à revisão, poucos erros, mais por conta de pontuação faltando, nada relevante que atrapalhe a leitura. 

   A autora é portuguesa e as expressões de seu país foram mantidas, foram então colocadas notas de rodapé para explicar algo que tivesse o contexto mais difícil de se compreender e achei isso muito interessante. O que me causou uma estranheza momentânea foi um erro de continuidade, capaz de ser detectado por quem lê com atenção maior. Não chega a incomodar, mas quem percebe fica pensando: "Mas como isso é possível?" E até acha graça de tal coisa, se ela pudesse acontecer, rs. E fico pensando também o porquê disso não ter sido visto.

   Outra coisa que me incomodou foi a inércia dos outros adultos: como os professores, as mães de colegas, não se aperceberam de nada? Principalmente porque Rossana está entre pessoas as quais podemos classificar de bem esclarecidas. E, da forma como a autora nos apresenta tudo o que acontece, como não perceber? Como ser conivente? A não ser que isso recaia sobre as teorias que teci sobre o final do livro. Aí é outra história, dá até para se aceitar e compreender o modo como isso foi conduzido na narrativa.

   Eu não vou contar o final, é claro, mas quando cheguei às duas últimas páginas, senti-me incomodada. Porque o livro foi narrado em terceira pessoa e, pelo final dele, da forma como compreendi, cheguei à conclusão de que isso não deveria ter ocorrido, que o certo seria uma narração em primeira pessoa. Na verdade, tive duas interpretações sobre o final, mas a segunda seria fantasiosa demais e, caso tivesse acontecido, mostraria uma lacuna aberta na história, no tempo, algo que não foi explicitado ao leitor como teria acontecido. Então, fico com a primeira opção. Ainda que também me sinta incomodada com ele.

   O texto de "Distúrbio" é forte, sim, e quem o ler deve estar preparado para isso. Não é algo que seja contínuo na história, a meu ver Valentina Silva Ferreira soube dosar isso muito bem, os momentos que indignam e outros momentos, em que chegamos a pensar que, talvez, apesar de tudo, o livro terá um final feliz, merecido. Parabéns à autora pelo livro.

       "A água crescia na boca, os olhos, esbugalhados de fome, gritavam como nunca.          
     —  Toma, tu mereces. Mas não te habitues, é só hoje. E amanhã o exercício será a dobrar.
      Rossana não ouvia. Tinha-se atirado ao prato como um leão faminto de dias. que se jogava a uma carcaça. Saboreou cada garfada, mastigou o mais devagar que lhe foi possível. Ao acabar, pousou as mãos na barriga. Era capaz de comer aquilo para sempre." (p.56)

Página do livro no site da editora.

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