domingo, 27 de janeiro de 2013

J.D. Salinger por Daniel Clowes


Salinger irritado com paparazzi.

Há algum tempo, li Mundo Fantasma, de Daniel Clowes. Ler essa obra era um débito antigo comigo mesmo. Já conhecia a graphic novel Como uma Luva de Veludo Moldada em Ferro¹, do mesmo autor – uma obra, no mínimo, diferente, que aborda o imaginário popular norte-americano de uma maneira realista. Como estava difícil encontrar Mundo Fantasma à venda e, por enquanto, me recuso a ler scans, o jeito foi aguardar. E, enfim, comprei a HQ. É excelente. E não pude deixar de associá-la ao romance de Salinger. Abaixo, abordo aspectos do romance e, após, do quadrinho, para evidenciar as razões dessa associação.

Recordo três filmes que citam O Apanhador no Campo de CenteioO ColecionadorTeoria da Conspiração e O Assassinato de John Lennon. Devem haver outros. Isso é engraçado se levarmos em conta que o autor do romance, J. D. Salinger, odiava o cinema. Essa ojeriza aos filmes é repetida pela boca de Holden Caulfield, o protagonista pentelho da obra. Mas o cinema, em se tratando de Holden, não é paradigma para nada. Ele odeia tudo e todos. No livro, sua irmã – Phoebe – pergunta do que ele gosta, qualquer coisa. Ele só consegue pensar em um garoto falecido, que, na verdade, mal conhecia. Aqui, temos um dos trechos mais tocantes da obra:
Aí ouvi todo mundo correndo pelo corredor e se despencando escada abaixo. Botei o roupão e também desci correndo, e lá estava o James Castle, caído bem nos degraus de pedra e tudo. Estava morto, os dentes e sangue espalhados por todo o lado, e ninguém nem ao menos chegava perto dele. Estava com um suéter de gola alta que eu havia emprestado a ele. E não aconteceu nada com os caras que estavam no quarto dele. Só foram espulsos do colégio. Nem ao menos foram presos.”²
A cada capítulo, Holden xinga o cinema; refere-se ao próprio irmão (mencionado apenas pela inciais D.B.), roteirista em Hollywood, como um “prostituído”. Na verdade, tanto esse irmão, quando a irmã, são as únicas pessoas que o riquinho e mimado  parece gostar. Além de Allie, o caçula, falecido e sempre vivo na memória familiar. Tudo, para ele, é cretino e imbecil.

Holden Caulfield é um eterno adolescente, aos dezessete anos, possivelmente na década de 50, em plena Nova Iorque. E como nos faz lembrar nós mesmo, quando adolescentes, com nossos quinze anos de idade, quando achávamos tudo à nossa volta cretino e imbecil. Maduros, vemos o erro de pensamento do rapaz.Sabemos que, na verdade, todos são cretinos, cada um à sua maneira. Até nós mesmos. E, assim como nos chateamos com a imbecilidade alheia, os outros também se chateiam com a nossa. Não adianta querer mudar nada. O romance narra, quase totalmente, um final de semana, saindo desse momento apenas próximo ao final. E Holden não muda nada à sua volta, nem a si mesmo. E, tentando mudar a si mesmo (em parte), a fim de buscar mais tranquilidade para sua vida, é que J. D. Salinger parece nos dizer que ele vai a um hospital psiquiátrico, de onde nos conta esses três dias em sua vida.

O Apanhador… não é um romance rural. O título remete uma canção que cita um trecho do poema de Robert Burns. A primeira vez, no livro, que Holden escuta a canção, é cantada (de maneira errada) por um garoto, na rua. Depois, quando Phoebe pergunta o que ele quer ser (profissão, ocupação), mais à frente, ele cita o verso, dando o título a obra.
Seja como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o que é quê eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho de aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer.
No trecho acima, ele parece querer ser um protetor da vida pura, ingênua, das crianças, para que não se emporcalhem com o desencantamento da vida adulta. Penso que o nome de Holden é emblemático, embora não me depare com pessoas pensando sobre isso. Seu primeiro nome me lembra “abraço”, “pegar”, “segurar”. Enquanto seu sobrenome me remete à “coifa” (caul),“calor”, juntamento com a palavra “campo” (field). Seu nome já me parece um propósito em seus desígnios (ou desejos pueris).

Mas, durante toda a história, é o Caulfield que está caindo, vertiginosamente, como alertado pelo seu professor Antolini:
Tenho a impressão de que você está caminhando para algum espécie de queda… uma queda tremenda. Mas, honestamente, não sei de que espécie…
Sobre o autor, é sempre bom destacar sua reclusão e que poucas fotografias lhe são conhecidas. Durante anos, morou na pequena cidade de Cornish, em New Hampshire.

Quem não leu, vale a pena. A leitura é curta, fácil e dinâmica. Recorde-se de quando você era o centro do planeta e nada era tão bom como deveria ser. Mas, sim: o mundo é cretino; nós somos. Cada um com a sua parte. Penso que, mais à frente, Holden descobriu isso.


Mundo Fantasma, no Brasil, foi publicado pela Gal Editora, editado e traduzido por Maurício Muniz, o controverso editor da extinta (e, sim, saudosa) Pandora Books. É bom lembrar que esta última - controvérsias à parte sobre seus problemas de licenciamentos – foi responsável por dar aos carentes leitores brasileiros obras até então postas um pouco de lado. E a Gal, atualmente, parece disposta a fazer a diferença, conquanto com cautela e pouco número de publicações.

Basicamente, Mundo Fantasma aborda alguns dias nas vidas de duas jovens amigas, Enid e Rebecca, enquanto, à toa na vida – naquela fase entre o final da adolescência e o início do peso da maturidade -, discorrem acerca de banalidades, hábitos e acontecimentos à sua volta, tendo sempre uma crítica ácida ou mal educada – bem fundada ou vazia – sobre tudo. E é aí onde enxergamos O Apanhador no Campo de Centeio. Mudando a época e os personagens, encontramos em Enid e Rebecca – mais na primeira que na segunda – o caráter confuso e sectário de Holden Caulfield. Mas, diferente do que ocorre com a criação de Salinger, Enid sabe – e revela à sua amiga – que sempre se odiou.

Em um determinado momento do quadrinho, Enid comenta, numa lanchonete: “Putz, este lugar é uma merda… Antes, éramos as únicas pessoas legais que vinham aqui“. Esse comentário é emblemático, e poderia muito bem ter saído da boca de Holden. Mas, enquanto este procura ajuda médica para se ajustar mais ao mundo (compreender-se), Enid empreende uma jornada solitária para isso, procurando, em ao menos um dia em sua vida, ir a outra cidade, onde seria outra pessoa. Em uma viagem de carro, ela confidencia a Rebecca: “Eu sinto que quero virar alguém completamente diferente“. E, mais à frente: “Antes de ter que ir pra faculdade, meu plano secreto era um dia tomar um ônibus pra outra cidade qualquer, sem contar nada pra ninguém, e virar uma pessoa totalmente diferente… e não voltar até que tivesse virado essa pessoa diferente“.

Rebecca é a parte conformada de Enid e, durante a história, lhe serve de apoio. Aliás, em um determinado ponto, ela se reconhece como alguém resignada e inerte, incapaz até mesmo de sair de casa se não for “empurrada” pela Enid.

Pouco antes de concluir a narrativa, Enid recebe a notícia que não vai para faculdade, pois foi reprovada no exame de admissão, e diz ao pai: “Eu sabia que não era esperta o bastante para passar no exame“. Tais palavras não seriam pronunciadas com tanta facilidade por Holden, mesmo que ele tivesse conhecimento disso. E, assim, ela tem como opção imediata viver o restante de sua vida na cidadezinha de sempre, junto com todos os outros esquisitos e fracassados, perdendo até mesmo o garoto que ama para sua contraparte resignada, Rebecca – de quem, pouco a pouco, vai se afastando.

Às duras penas, enfim, todos descobrem o mesmo que Holden Caulfield: que apenas fazem parte da porcaria toda.

Como sabemos, o quadrinho foi adaptado para o cinema. Enquanto J.D. Salinger não gostaria da notícia sobre a adaptação cinematográfica de alguma obra sua³, o roteiro foi escrito pelo próprio Daniel Clowes e conta com a beleza de Scarlett Johansson e de Thora Birch, a eterna Jane de Beleza Americana.


Observações

1. Como uma Luva de Veludo Moldada em Ferro foi publicada, no Brasil, pela Conrad no ano de 2002;

2. As citações de O Apanhador no Campo de Centeio foram retiradas da 17ª edição brasileira publicada pela Editora do Autor;

3. O conto Uncle Wiggily in Connecticut de Salinger foi adaptado para o cinema, resultando no filme My Foolish Heart, o que aumentou a ojeriza do autor pela indústria cinematográfica.

Gostou da resenha sobre essas duas obras tão distintas? Kleiton Gonçalves é autor do Blog do Neófito. Seja bem vindo a este espaço virtual.

2 comentários:

  1. Oi!
    Nossa, adorei o post! Sério. Muito bem elaborado e organizado.
    Sobre Salinger, não o conhecia e nem muito menos suas obras. (vergonha) Mas fiquei muito interessado nas obras, principalmente em "Mundo Fantasma". Muito boa sua análise.
    Abraço!

    "Palavras ao Vento..."
    www.leandro-de-lira.com

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  2. Obrigado, Leandro.

    Eu havia escrito uma resenha sobre o Apanhador. Depois, outra sobre Mundo Fantasma. Aí, vendo a relação entre ambas as obras, redigi essa.

    Abç!

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