segunda-feira, 1 de abril de 2013

O mestre e Margarida de Mikhail Bulgákov


Postagem atualizada.

Capas da edição nacional.

... quem és, afinal? 
– Sou parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente faz o bem. 
(Fausto, de Goethe, em epígrafe ao romance )

Há ótimas narrativas onde o Diabo é protagonista ou coadjuvante. Acho o conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis, uma das histórias mais divertidas e inteligentes sobre a antiga rixa do tinhoso com o Todo Poderoso. Em Dom Casmurro (genial romance de quem realmente merece o título de gênio), também temos o excelente Capítulo IX - A Ópera tentando explicar o porquê de tanto descompasso na existência. Gostaria de falar sobre essas obras. Quem sabe mais à frente. Há anos quero resenhar Fausto de Goethe. Espero que um maior número de pessoas leiam obras como essas, ao invés de gastarem seu tempo com os pasquins vagabundos que entulham as livrarias a cada ano: sempre um novo livro, saga, tri-hex(etc.)-logia de algum escritor vagabundo exaltado pelas mídias burras que só crescem.

Há vários livros que recomendo, felizes em transformar o Estrela da Manhã em personagem instigante. Para começar, indico a curta novela O Diabo Enamorado, de Jacques Cazotte, onde conhecemos Biondetta na sua ânsia de amar e ser amada(o). O Físico Prodigioso de Jorge de Sena nos deu um diabinho pervertido, numa trama fantástica (ou melhor: delirante). Balada para Satã - escrito por Fred Mustard Stewart - já ganhou adaptação cinematográfica e é uma narrativa leve, magistralmente conduzida (como uma valsa, assim como no título original, The Mephisto Waltz). Sobre Coração Satânico de William Hjortsberg, já falei aqui no blog. Seria bom comentar cada uma dessas obras. No entanto, agora, quero apenas - nos próximos parágrafos - fazer alguns comentários sobre O mestre e Margarida, livro que apenas este ano li e vale a pena recomendar.

O mestre e Margarida foi escrito pelo russo Mikhail Bulgákov, entre os anos de 1929 e 1940, sendo efetivamente publicado apenas após a morte do autor. Na verdade, de certa forma, temos uma segunda versão da obra, já que o primeiro manuscrito foi destruído pelo autor, por medo de retaliação das autoridades soviéticas, acaso encontrado. Aliás, sobre esse fato, no próprio romance o Diabo dirige-se ao "Mestre" (escritor que dá título ao livro) e lhe diz, sobre uma obra destruída no fogo que retratava a vida de Pôncio Pilatos: "Manuscritos não ardem" (p. 325). Daí, a obra ressurge como se nunca tivessem lhe arremessado às chamas. O manuscrito ainda é ideia. E esta não arde!

Na trama, Satanás com sua comitiva bizarra aparecem em Moscou, e a loucura espalha-se rapidamente. De início, desconhecemos seu propósito. A princípio, descobrimos apenas que ele se apresentará no Teatro de Variedades da Metrópole soviética. Mas à frente, no entanto, fica claro seu afã: "Vou lhe abrir um segredo: não sou artista, só queria ver os moscovitas em massa, e isso é mais cômodo conseguir num teatro. Foi o meu séquito (...) que organizou a sessão, eu só fiquei sentado observando os moscovitas". Esse séquito é composto por um gato preto enorme - às vezes apresentado com feições quase humanas -, um senhor de monóculo quebrado e roupas extremamente justas e uma feiticeira ruiva de olhos penetrantes, sempre nua. Durante quase toda a narrativa, Satã aparenta sobriedade, quase sempre estando em repouso, salvo para pontuais ordens aos babões. São seus seguidores que, com artimanhas e violência, causam desgraça em massa à população gananciosa e dissimulada sob o manto do socialismo. E como nos causa estranheza o modo de vida soviético! O racionamento antinatural, o esforço em nome do Estado, as artimanhas e intrigas burocráticas em busca de indicação a bons cargos. Mas acho que o espanto fica mais a cargo das habitações coletivas e os jogos sujos para se conseguir cada vez mais cômodos e melhores localizações. A entrega de divisas (ouro, pedras preciosas e moeda estrangeira) pela população ao Poder Público também sempre se destaca e é fonte de joguetes pela derrocada do vizinho ou colega de trabalho.

Conquanto sempre pensemos que O Mestre... tenha o Diabo por protagonista, é lendo-o que constatamos o contrário. Há um romance dentro do romance. Os capítulos escritos por Bulgákov são entremeados pelos capítulos do romance escrito pelo Mestre (escritor amador, autor de obra cujo título nunca é revelado, mas que aborda alguns dias da vida de Pilatos). Assim, o Mestre e sua amada Margarida são protagonistas do romance, assim como Pilatos é protagonista de outra parte da obra: o romance dentro do romance. Curioso que apenas no Capítulo 13 conhecemos o personagem que justifica toda a obra. O título de tal capítulo, ademais, é emblemático (e divertido): "Surge o herói".

Acredito que o romance se destaque na modernidade não tanto pelas suas qualidades literárias, técnicas narrativas, experimentalismo e crônica de um tempo específico e importante de nossa história recente; mas, sobretudo, pela sua repercussão pop. Quem conhece Sympathy For The Devil dos Rolling Stones, também cantada por Cláudia Ohana (a vampira Natasha) na novela global Vamp? Sua segunda estrofe é a seguinte: "E eu estava por lá quando Jesus Cristo / Teve seu momento de dúvida e dor / Certifiquei-me de que Pilatos / Lavasse suas mãos e selasse seu destino". Para esses versos, destaco um parágrafo do segundo capítulo de O Mestre..., a seguir: "Estive na varanda com Pôncio Pilatos, no jardim, quando ele conversou com Caifás, estive também no palanque, só que às escondidas, incógnito, por assim dizer, então peço aos senhores, nem uma palavra a ninguém, segredo total! Shh!" (p. 50).

Aliás, desde os primeiros dois versos já reconhecemos o demônio concebido pelo autor russo: "Por favor, permita que eu me apresente / Sou um homem de riquezas e bom gosto". O estilo de vida desse personagem não deixa a desejar ao mais displicente bon vivant, a exemplo do conselho (sábio, penso) que ele dá um doente de câncer no fígado: "É, não lhe recomendaria internar-se na clínica (...). Que sentido tem morrer num quarto de hospital sob os gemidos e roncos de doentes terminais? Não seria melhor organizar uma festa com esses vinte e sete mil e, depois de tomar veneno, passar para o outro mundo sob o som de cordas, cercado e belas mulheres embriagadas e amigos alegres?" (p. 240). 

Vários aspectos literários - além da divertida e inteligente trama - chama-nos atenção durante a leitura. O que mais me capturou no livro, todavia, é a mudança narrativa brusca entre capítulos, como se tivesse vários autores. Aliás, dentro do romance há outro romance (como já dito acima): o livro escrito pelo personagem apenas chamado de "Mestre", sobre a vida de Pôncio Pilatos, o Procurador romano na Judéia que condenou Yeshua Ha-Notzri (Jesus de Nazaré) à morte por crucifixação. Entremeando a trama, conhecemos pedaços dessa obra aparentemente destruída no fogo. Sobre o "mestre" que dá título a obra, precisamos ressaltar que essa alcunha lhe é dada por sua amante - Margarida, mulher melancólica que cai nas graças de Satanás, sendo-lhe concedido viver em paz, na tranquilidade eterna, juntamente com seu amado. É curioso que, conquanto aparentemente ávido em plantar a discórdia, o caos e a loucura, é justamente Satã (chamado, na obra, de Woland - variante alemã para "Diabo") quem recompensa o calejado casal, praticando o que mais se aproxima de Justiça. Creio que, daí, se faz pertinente a citação acima, retirada do Fausto de Goethe, em epígrafe ao livro de Bulgákov.

Ainda sobre as mudanças narrativas, destaco momento onde, após uma densa passagem, o autor nos diz, aos final do Capítulo: "O que mais de estranho aconteceu em Moscou essa noite nós não sabemos e, é claro, não vamos ficar procurando saber. Até porque já chegou a hora de passar para a segunda parte desta narrativa verdadeira. Venha comigo, leitor!" (p. 246). Com esse artifício,  Mikhail Bulgákov deixa a "seriedade" de sua prosa de lado e nos faz uma chamada folhetinesca.

Ao final da obra, uma união entre a ficção que acompanhamos e a outra ficção (criada pelo Mestre) se realiza. Woland parece agir como um mensageiro de Yeshua Ha-Notzri e adverte o Mestre sobre a leitura de sua obra pelas pessoas ali retratadas. Além disso, ainda informa que a obra não está concluída. Para isso, ele precisa encontrar-se com o próprio Procurador romano e dar-lhe um destino (em um daqueles pontos fantásticos presentes na obra, já na página 433):
Leram seu romance (...) e disseram que, infelizmente, não foi finalizado. Pois bem, gostaria de mostrar para o senhor o seu herói. Há aproximadamente dois mil anos ele está neste local e dorme, mas, quando chega a lua cheia, como está vendo, fica atormentado pela insônia. A lua atormenta não somente a ele, mas também seu fiel vigia, o cachorro. Caso seja verdade que a covardia é pior defeito, então penso que o cachorro não é culpado. A única coisa da qual tinha medo o corajoso cão era da tempestade. Mas aquele que ama tem que dividir o sofrimento com o amado.
Após o trecho acima, acontece a abertura de um caminho lunar, com o auxílio do Mestre, onde Pilatos poderá, com seu cão sempre amigo, encontrar a paz. E a citação da frase sobre covardia bem como o sofrimento junto ao amado remete a colocações emblemáticas em toda a trama, pois foi o Cônsul penalizado por sua covardia ante o povo de Caifás, condenando à morte um inocente. Assim, também é covarde a população moscovita que sofreu nas mãos do séquito de Satanás. Quanto à solidariedade no sofrimento, foi o que aconteceu ao casal da obra: o Mestre e Margarida, que amargaram dias infelizes inexoráveis até, com a ajuda de Satã, encontrarem a paz num local sem tempo, fora de qualquer espaço.

A obra possui um epílogo onde os pedaços da loucura semeada pela passagem do demônio são recolhidos e o povo de Moscou tenta compreendê-lo da maneira mais racional possível (num esforço irracional para isso). E, como em outros momentos do romance, este epílogo ainda mantem o fôlego para a comédia inspirada no ridículo humano. É de se reproduzir, por exemplo, trecho onde alguém captura um gato - já fora até mesmo de Moscou, aonde as notícias espalharam-se - e leva-o à polícia, por achar que o inocente animal estava envolvido com o séquito diabólico (apenas por ser felino e negro), ao que a dona do bichano sai em seu resgate: "Ao mesmo tempo, a velhinha, que soubera pelos vizinhos da prisão de seu gato,  correu para o departamento de polícia e chegou a tempo. Fez as mais lisonjeiras recomendações sobre o gato, explicou que o conhecia havia cinco anos, desde que era um gatinho, disse que se responsabilizava por ele, provou que ele não estava envolvido em nada ruim, e que nunca tinha ido a Moscou. Nasceu em Armavir, lá cresceu e lá aprendeu a pegar ratos" (p. 439).

No final das contas, acho que todos tiveram o merecido, mesmo que por mera farra da comissão infernal, em uma grande arruaça desembestada sobre a Terra. Pessoas de mau caráter penaram com a própria vida ou perda da lucidez, o caos perdurou e um amor verdadeiro pode prosperar na eternidade.

Acerca da edição brasileira, valeu a pena. Ganhei de presente no ano passado e demorei quase outro ano para começar a lê-la, pois teve que "ficar na fila" (a qual venho evitando aumentar). Vi que o preço está em torno de R$ 55,00. Já a obra digital custa quase R$ 30,00 (valor este que não compreendo, conquanto me faça entender porque o mercado de livros virtuais não decola no Brasil). A tradução (do original em russo) ficou a cargo de Zoia Prestes. Foi uma boa tradução? Não sei. Tenho que confiar na tradutora, pois não sei nenhuma palavra em russo para tentar comparar com alguns trechos do original. Mas o trabalho dela foi elogiado, em geral. Gostei bastante das notas ao final, o que evita danos ao texto primevo ao se tentar "forçar" uma tradução ou adaptação. O trabalho da editora Objetiva - por meio do selo Alfaguara - é bom: brochura resistente, com orelhas. O papel tem uma gramatura boa e não permite que vejamos as letras através das páginas; além disso, é daquele mais amarelado, que não cansa a visão; tipo pólen soft. No entanto, achei o tamanho da fonte pequeno. Poderia ser maior, assim como o espaçamento entre linhas. Há vários anos, minha visão está cansada para leitura em livros com letrinhas. Como leitor/consumidor regular, prefiro pagar mais em letras generosas, com bom espaçamento e amplas margens (logo, mais páginas), do que nessas tentativas de economia que sacrificam o prazer de ler. Além disso, também pesquisei uma capa em boa resolução, para esta postagem, e não encontrei. Uma pena, ainda mais considerando o belo trabalho do designer Victor Burton. Assim, acabei retirando fotografias de meu exemplar.

Enfim, era isso que tinha a comentar sobre esse belíssimo romance! Se puder, leia. Vale a pena.

Notas:

1. Obviamente, a indicação do número da página, nesta postagem, refere-se à edição que possuo.

2. Sobre Victor Burton, que não mantem mais website no ar, recomendo perfil do site Companhia das Letras.

3. Em 2005, foi exibida série para televisão russa baseada no romance.

4. O cineasta Roman Polanski escreveu um roteiro adptado da obra, e afirma ser o melhor trabalho que, possivelmente, ele nunca realize.

5. A canção Pilates de Pearl Jam também foi inspirada no trabalho de Bulgákov.


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14 comentários:

  1. Não é de estranhar uma obra metafórica, já que quem mandava na extinta União Soviética era um demônio chamado Stalin. Dica anotada com toda a certeza, quero provar do mesmo sabor e espanto que você, caro Fabio.

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    1. Rodolfo!
      Bem interessante mesmmo o livro, também anotei.
      cheirinhos
      Rudy

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  2. Massa a resenha hem!!!
    Rodolfo amigão, essa quem fez foi o Kleyton, me sinto honrado!!!

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    1. Fabinho!
      O Kleiton está inspirado na resenha.
      cheirinhos
      Rudy

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  3. Obrigado pelos comentários!

    Imaginei que você iria gostar, Fabio!

    Abç!

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    1. Kleiton!
      A resenha ´nos dá a real dimensão do que poderemos encontrar no livro, bem detalhada e longa, amo os detalhes.
      Agora entendi porque achou que leio rápido; na verdade os livros lidos e resenhados não são tão complexos quanto este... deste tipo, demoria vários dias na leitura.
      Obrigada por nos presentear com a linda resenha.
      cheirinhos
      Rudy

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  4. Puxa...adoreiii sua resenha, mas infelizmente não fiz a busca, aliás aprendi agora ahahah, e fiz outra. Sinto muito. Mas acredito que seja bacana ler visões diferentes da mesma obra, até porque a sua é completíssima e a minha apenas um prólogo. Se isso te incomodar de alguma forma...eu posso deletar a minha resenha ok?
    Bjs

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    1. Lua amada, é ótimo termos mais de uma resenha para o mesmo livro, fica mais rica a informação para quem acessa, com pontos de vista diferente né! Agora mesmo acabo de postar a QUARTA resenha aqui no blog para um livro maravilhoso (com o qual você me presenteou!)
      Por isso não precisa ficar preocupada com a duplicidade ok! Queremos suas lindas resenhas meu bem!
      E o Kleyton arrasa mesmo nas resenhas né! Também gosto muito de lê-las, sempre uma viagem sensível e inteligente!

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    2. Moon!
      Cada um tem sua própria visão sobre determinado livro, e na minha concepção, nenhuma é certa ou errada e todas são válidas.
      Minha opinião é que não deve deletar sua resenha, assim teremos enriquecido no blog, vários pontos de vista.
      cheirinhos
      Rudy

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  5. "Se isso te incomodar de alguma forma...eu posso deletar a minha resenha ok?"

    ?????

    Não entendi...

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    1. Oi amigo Kleiton (cismo de escrever seu nome com y, perdoe!), acho que a Lua estava preocupada com a duplicidade, respondi a ela logo acima ok!
      Bom isso tudo só me deixou ainda com mais vontade de ler esse livro!!!
      abração!

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    2. Hum... Ok! Li os comentários dela ao livro e gostei. Aproveitei e atualizei a minha, pois sempre há algo a mais para escrever!!!

      Não imaginei que ela pensaria assim. Afinal, aqui tá cheio de várias resenhas sobre um mesmo títulos. E é o objeto do blog (penso): mais e mais resenhas.

      Aliás, quando comentei O Apanhador no Campo de Centeio, recordo que um usuário tb estava postando, com diferença de poucos dias, resenha sobre o mesmo título...

      Abraços!!!

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  6. Morgan!
    Vou sim lá visitar o blog.
    Volte sempre.
    cheirinhos
    Rudy

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  7. Fabinho, concordo em gênero, número e grau.
    Quanto mais opiniões (e se forem diversificadas, ainda melhor), mais gostoso de acompanhar o blog.
    cheirinhos
    Rudy

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