quarta-feira, 4 de agosto de 2021

NOITES DO SERTÃO – João Guimarães Rosa

 


Nessa altura de minha tríplice jornada – como leitor, como escritor e como ser humano – retornar ao universo literário de Guimarães Rosa foi uma experiência que só posso chamar de religiosa. Debruçado nessas páginas de leitura tão difícil quanto doce (como a dureza do coco que guarda a água refrescante e a carne nutritiva), agradeci inúmeras vezes a Deus pelo encantamento da Literatura, que tem o poder de nos elevar e nos fazer enxergar acima de nós mesmos. Ler Guimarães Rosa é dar testemunho da grandeza que a alma humana pode alcançar, assim como ter dolorosa consciência de sua própria pequenez – junto com um desejo irresistível de se expandir, de enxergar mais, de abraçar o mundo em seu coração. Essa é a magia da Arte, é a dádiva da Literatura.

“Noites do Sertão” compõe-se de duas novelas ou “poemas”, como as chama Guimarães Rosa. O primeiro poema é “Dão-Lalalão (o devente)”, quase um conto, que me surpreendeu pela intensidade do suspense: li agoniado na expectativa do tenso desfecho. Terminado o primeiro poema, estamos com o espírito azeitado para a leitura de “Buriti”, certamente uma obra-prima da literatura mundial. Fiquei horas refletindo sobre esse texto, que traz tantas possibilidades quanto a própria vida. Como não posso registrar tudo o que pensei nesse exíguo espaço de uma resenha, vou me contentar com algumas pinceladas do próprio autor, começando pelo cenário da fazenda do Buriti Bom, onde acontece a maior parte da história:

“Triste é a água e alegre é. Como o rio continua, Mas o Buriti Bom era um belo poço parado. Ali nada podia acontecer, a não ser a lenda.”

Três personagens femininas muito marcantes vivem nessa fazenda, começando por Lalinha:

“Dona Lalinha, tem mulheres de lindeza assim, a gente sente a precisão de tomar um gole de bebida, antes de olhar outra vez.”

O contraponto de Lalinha é a feia e doentia Maria Behu:

“Ajoelhada no meio do quarto, Maria Behu rezava. O terço serpenteava preto entre suas mãos, e, à sétima ave-maria de cada mistério, ela beijava o chão, por orgulho de humildade.”

Ponto de conexão entre os dois polos é Glorinha:

“Maria da Glória é inocente, de uma inocência forte, herdada, que a vida ainda irá desmanchar e depois refazer.”

Glorinha encanta e se encanta por Miguel, que é descrito de forma igualmente vívida:

“Trabalhava atento, com afinco. Somente assim podia enfeixar suas forças no movimento pequeno do mundo. Como se estivesse comprando, aos poucos, o direito a uma definitiva alegria, por vir, e que ele carecia de não saber qual iria ser.”

Cometo a injustiça de não falar de outros personagens marcantes como Iô Liodório, Nhô Gualberto, Dona-Dona, para citar a curiosa figura do Chefe, que vive no moinho da fazenda e não consegue dormir à noite, apavorado à espera de algum perigo anunciado pelos ruídos noturnos:

“O pior, é que todo dia tem sua noite, todo dia. (...) A noite é cheia de imundícies.”

A grandeza da Literatura de Guimarães Rosa é expressar em linguagem poderosa e bela algo que reverbera como cristalina verdade no âmago de nosso ser. Comparo sua prosa à poesia de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, que sabiam falar com muita beleza das verdades da alma. Como por exemplo:

“Deus podia ter botado os cegos no mundo, para vigiarem os que enxergavam. Esses cegos, como os brabos arruaceiros: os valentões, que eram mandados permitido como castigo de todos, para destruir o sensível do bom sossego.”

Quando li esse trecho, senti um consolo para as indignações diárias que temos vivenciado em nosso Brasil governado por valentões. E para deixar claro que não era viagem minha enxergar uma sabedoria atualíssima nesse texto, eis que me deparo com essa genial explicação para o negacionismo da vacina (só que na história estavam falando de vacinar o gado, e não seres supostamente racionais):

“Antes, desconfiavam da aparelhagem, do mecanismo das vacinas, quase uma forma de pecado; queriam o que fosse uma benzedura, com virtude de raminho verde de planta e mágicas palavras no encoberto – queriam atalhos.”

Destaco ainda duas citações luminosas, em referência à tão comentada invenção de neologismos praticada por Guimarães Rosa. Note-se que as palavras inventadas (“tãomente” e “vãidade”) não estão ali por capricho, mas por altíssima exigência estética:

“O amor exigia mulheres e homens ávidos tãomente da essência do presente, donos de um perfeição espessa, o espírito que compreendesse o corpo.”

“Numa criatura humana, quase sempre há tão pouca coisa. Tanto se desperdiçam, incompletos, bulhentos, na vãidade de viver.”

Encerro com muita gratidão e reverência, compartilhando mais algumas preciosas pérolas de João:

“Um bom amigo vale mais que uma boa carabina.”

“Quem manda e paga, é que guarda ou que estraga...”

“Mulher só fica velha é da cintura para cima...”

“A farinha tem seu dia de feijão.”

“Amor é coragens. E amor é sede depois de se ter bem bebido...”

“Querer-bem não tem beiradas...”

“Quem souber o que é a sorte, sabe o que é Deus, sabe o que é tudo.”

“A vida remexe muito. A felicidade mesma está remudando de eito, e a gente não sabe, cuida que é infelicidade que chegou.”

“Tem um não em todo sim, e as pessoas são muito variadas.”

“Ela era uma pedrinha caindo, à imensa espera de um fundo.”

“Morrer talvez seja voltar para a poesia...”

“Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinha... Essa – a alegria que Ele quer...”

“A vida não tem passado. Toda hora o barro se refaz. Deus ensina.”


 

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FAVELA GÓTICA liberado na íntegra no site da Verlidelas Editora:

https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica

 

Durante esse período de pandemia, em meio a tantas incertezas, temos uma única garantia: a de que nada será como antes. Estamos todos tendo a oportunidade preciosa de participar ativamente na reconstrução de um mundo novo, mais luminoso e solidário.

 

O livro Favela Gótica fala justamente sobre “a monstruosidade essencial do cotidiano”, em uma história cheia de suspense, fantasia e aventura. Ao nos tornamos mais conscientes das sombras que existem em nossa sociedade, seremos mais capazes, assim como a protagonista Liana, de trilhar um caminho coletivo das Trevas para a Luz.

 

A versão física de Favela Gótica está à venda no site da Verlidelas, mas – na tentativa de proporcionar entretenimento a todos durante a quarentena – o autor e a editora estão disponibilizando gratuitamente, inclusive para download, o PDF de todo o livro.

 

Fique à vontade para repassar o arquivo para amigos e parentes.

 

Leia ou baixe todo o livro no link abaixo:

https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica

 

Link do livro no SKOOB:

https://www.skoob.com.br/livro/840734ED845858

 

Book trailer

https://youtu.be/FjoydccxJGA


 

Entrevista sobre o livro na FM Cultura

https://youtu.be/IuZBWIBYeHE



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