Nessa altura de minha tríplice jornada – como leitor, como escritor e
como ser humano – retornar ao universo literário de Guimarães Rosa foi uma experiência
que só posso chamar de religiosa. Debruçado nessas páginas de leitura tão
difícil quanto doce (como a dureza do coco que guarda a água refrescante e a
carne nutritiva), agradeci inúmeras vezes a Deus pelo encantamento da
Literatura, que tem o poder de nos elevar e nos fazer enxergar acima de nós
mesmos. Ler Guimarães Rosa é dar testemunho da grandeza que a alma humana pode
alcançar, assim como ter dolorosa consciência de sua própria pequenez – junto com
um desejo irresistível de se expandir, de enxergar mais, de abraçar o mundo em
seu coração. Essa é a magia da Arte, é a dádiva da Literatura.
“Noites do Sertão” compõe-se de duas novelas ou “poemas”, como as chama Guimarães Rosa. O primeiro poema é “Dão-Lalalão (o devente)”, quase um conto, que me surpreendeu pela intensidade do suspense: li agoniado na expectativa do tenso desfecho. Terminado o primeiro poema, estamos com o espírito azeitado para a leitura de “Buriti”, certamente uma obra-prima da literatura mundial. Fiquei horas refletindo sobre esse texto, que traz tantas possibilidades quanto a própria vida. Como não posso registrar tudo o que pensei nesse exíguo espaço de uma resenha, vou me contentar com algumas pinceladas do próprio autor, começando pelo cenário da fazenda do Buriti Bom, onde acontece a maior parte da história:
“Triste é a água e alegre é. Como o rio continua, Mas o Buriti Bom era um belo poço parado. Ali nada podia acontecer, a não ser a lenda.”
Três personagens femininas muito marcantes vivem nessa fazenda, começando por Lalinha:
“Dona Lalinha, tem mulheres de lindeza assim, a
gente sente a precisão de tomar um gole de bebida, antes de olhar outra vez.”
O contraponto de Lalinha é a feia e doentia Maria Behu:
“Ajoelhada no meio do quarto, Maria Behu rezava. O
terço serpenteava preto entre suas mãos, e, à sétima ave-maria de cada
mistério, ela beijava o chão, por orgulho de humildade.”
Ponto de conexão entre os dois polos é Glorinha:
“Maria da Glória é inocente, de uma inocência
forte, herdada, que a vida ainda irá desmanchar e depois refazer.”
Glorinha encanta e se encanta por Miguel, que é descrito de forma igualmente vívida:
“Trabalhava atento, com afinco. Somente assim podia
enfeixar suas forças no movimento pequeno do mundo. Como se estivesse
comprando, aos poucos, o direito a uma definitiva alegria, por vir, e que ele
carecia de não saber qual iria ser.”
Cometo a injustiça de não falar de outros personagens marcantes como Iô Liodório, Nhô Gualberto, Dona-Dona, para citar a curiosa figura do Chefe, que vive no moinho da fazenda e não consegue dormir à noite, apavorado à espera de algum perigo anunciado pelos ruídos noturnos:
“O pior, é que todo dia tem sua noite, todo dia.
(...) A noite é cheia de imundícies.”
A grandeza da Literatura de Guimarães Rosa é expressar em linguagem poderosa e bela algo que reverbera como cristalina verdade no âmago de nosso ser. Comparo sua prosa à poesia de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, que sabiam falar com muita beleza das verdades da alma. Como por exemplo:
“Deus podia ter botado os cegos no mundo, para
vigiarem os que enxergavam. Esses cegos, como os brabos arruaceiros: os
valentões, que eram mandados permitido como castigo de todos, para destruir o
sensível do bom sossego.”
Quando li esse trecho, senti um consolo para as indignações diárias que temos vivenciado em nosso Brasil governado por valentões. E para deixar claro que não era viagem minha enxergar uma sabedoria atualíssima nesse texto, eis que me deparo com essa genial explicação para o negacionismo da vacina (só que na história estavam falando de vacinar o gado, e não seres supostamente racionais):
“Antes, desconfiavam da aparelhagem, do mecanismo
das vacinas, quase uma forma de pecado; queriam o que fosse uma benzedura, com
virtude de raminho verde de planta e mágicas palavras no encoberto – queriam
atalhos.”
Destaco ainda duas citações luminosas, em referência à tão comentada invenção de neologismos praticada por Guimarães Rosa. Note-se que as palavras inventadas (“tãomente” e “vãidade”) não estão ali por capricho, mas por altíssima exigência estética:
“O amor exigia mulheres e homens ávidos tãomente da
essência do presente, donos de um perfeição espessa, o espírito que
compreendesse o corpo.”
“Numa criatura humana, quase sempre há tão pouca coisa. Tanto se desperdiçam, incompletos, bulhentos, na vãidade de viver.”
Encerro com muita gratidão e reverência, compartilhando mais algumas preciosas pérolas de João:
“Um bom amigo vale mais que uma boa carabina.”
“Quem manda e paga, é que guarda ou que estraga...”
“Mulher só fica velha é da cintura para cima...”
“A farinha tem seu dia de feijão.”
“Amor é coragens. E amor é sede depois de se ter bem bebido...”
“Querer-bem não tem beiradas...”
“Quem souber o que é a sorte, sabe o que é Deus, sabe o que é tudo.”
“A vida remexe muito. A felicidade mesma está remudando de eito, e a gente não sabe, cuida que é infelicidade que chegou.”
“Tem um não em todo sim, e as pessoas são muito variadas.”
“Ela era uma pedrinha caindo, à imensa espera de um fundo.”
“Morrer talvez seja voltar para a poesia...”
“Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinha... Essa – a alegria que Ele quer...”
“A vida não tem passado. Toda hora o barro se refaz. Deus ensina.”
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FAVELA
GÓTICA liberado na íntegra no site da Verlidelas Editora:
https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica
Durante
esse período de pandemia, em meio a tantas incertezas, temos uma única
garantia: a de que nada será como antes. Estamos todos tendo a oportunidade
preciosa de participar ativamente na reconstrução de um mundo novo, mais
luminoso e solidário.
O
livro Favela Gótica fala justamente sobre “a monstruosidade essencial do
cotidiano”, em uma história cheia de suspense, fantasia e aventura. Ao nos
tornamos mais conscientes das sombras que existem em nossa sociedade, seremos
mais capazes, assim como a protagonista Liana, de trilhar um caminho coletivo
das Trevas para a Luz.
A
versão física de Favela Gótica está à venda no site da Verlidelas, mas – na
tentativa de proporcionar entretenimento a todos durante a quarentena – o autor
e a editora estão disponibilizando gratuitamente, inclusive para download, o
PDF de todo o livro.
Fique
à vontade para repassar o arquivo para amigos e parentes.
Leia
ou baixe todo o livro no link abaixo:
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Book
trailer
Entrevista sobre o livro na
FM Cultura
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