Essa é uma obra
impressionante sob muitos aspectos. Primeira história em quadrinhos a ser
agraciada com o prestigioso prêmio Pulitzer, em 1992, “MAUS” foi publicada em
capítulos, ao longo de 11 anos, entre 1980 e 1991, e conta a história verídica
de Vladek Spiegelman, um judeu polonês que sobreviveu ao campo de concentração
de Auschwitz, tal como é contada por ele próprio ao seu filho Art, que por sua
vez teve a genialmente desconcertante ideia de transformar essa narrativa
brutal em uma história em quadrinhos onde os personagens são caracterizados
como animais antropomorfizados: os judeus são ratos, os nazistas são gatos, os
soldados americanos são cachorros e assim por diante. Aliás o título “MAUS”,
que adquire uma conotação ambígua em português, nada mais é que a palavra
“rato” em alemão.
Um fator que logo chama a
atenção nessa leitura é a crueza com que o autor expõe as dificuldades de
relacionamento com o pai, e também alguns momentos muito dolorosos passados
pela família, como o suicídio da mãe de Art, ocorrido em 1968, que é descrito
em minuciosos e excruciantes detalhes. Essa exposição tão íntima e visceral me
fez lembrar de uma crônica de Fernando Sabino sobre a arte de escrever, com
muitos conselhos preciosos para escritores iniciantes. O melhor desses
conselhos, aliás, é a célebre máxima de Sinclair Lewis: “escrever é a arte de
sentar o rabo em uma cadeira”! Em outro trecho dessa crônica do Sabino lemos
que um escritor experiente, que já é traquejado em seu ofício de palavras, é
capaz de escrever uma história envolvente a partir de uma história banal, do
tipo que se poderia contar durante um jantar em família. Mas o escritor
iniciante, que não possui esses recursos, precisa ter a coragem de arrancar o
próprio coração e colocá-lo, ainda sangrando, na mesa de jantar...
Art Spiegelman certamente não
tem o menor pudor de apresentar seu coração sangrando diante dos leitores. Mas
ele está longe de ser um escritor inexperiente, pois toda essa impiedosa
exposição de seus conflitos familiares serve a um altíssimo recurso literário,
quando o autor começa a retratar, com a mesma fria imparcialidade, os horrores
do nazismo e do holocausto. Diante da sinceridade inapelável de seu narrador, cada
página de “Maus” torna-se um inestimável documento histórico sobre os abismos e
monstruosidades que os seres humanos são capazes de cometer uns contra os
outros.
O que nos leva a reflexões que, infelizmente, ainda se fazem muito necessárias e atuais: o que é o nazismo? Que fenômenos são responsáveis pelo surgimento do nazismo? Como é possível que existam nazistas nos dias de hoje? Será mesmo verdade que existem nazistas brasileiros?
Ao notar a minha própria
perplexidade ao formular essas perguntas, tomei consciência de dois erros
básicos de raciocínio que geralmente cometemos ao falar sobre o nazismo. O
primeiro erro é considerar o nazismo como uma espécie de aberração histórica, um
fenômeno isolado no tempo e no espaço, e restrito à Alemanha da primeira metade
do século XX. Esse é um tema muito extenso e complexo, por isso vou me limitar
a comentar aqui, como um convite à pesquisa e à reflexão, sobre o quanto a
nossa sociedade de hoje foi literalmente construída a partir de valores
nazistas. Acontece que boa parte da ideologia nazista foi cunhada pelo então
Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels. Ele cunhou uma série de leis da
comunicação que foram utilizadas para fomentar o ódio racial e justificar o holocausto,
como por exemplo, a chamada lei do inimigo único: “o pão está caro? A culpa é
do judeu. Você está desempregado? A culpa é do judeu. Sua esposa está lhe
traindo? A culpa é do judeu.” E o xis da questão é que essas mesmas leis da
comunicação formuladas por Goebbels continuam em vigor nos dias de hoje. Foram
inventadas para legitimar o massacre de seres humanos, mas hoje são usadas para
vender sabão em pó, refrigerantes e até partidos políticos. Ou seja, a dita
sociedade de consumo, na qual querendo ou não vivemos todos, cresceu e
floresceu graças a uma ideologia nazista. Pense nisso...
O segundo erro de raciocínio,
muito comum, é associar o nazismo exclusivamente ao ódio racial. É certo que o
nazismo está intimamente associado a ideologias de supremacia étnica, mas a
verdadeira base do nazismo é o ódio. E assim como acontece com o amor, o ódio
não tem cor, não tem religião nem nacionalidade. Por isso é que é possível,
sim, lamentavelmente, que existam nazistas brasileiros. Novamente, esse é um
tema muito complexo, que pede estudo e reflexão. Deixo aqui, como um primeiro
passo nesse sentido, a constatação de que o ódio é filho do medo. Geralmente as
pessoas abraçam o ódio porque não conseguem reconhecer ou aceitar o próprio
medo. O nazismo floresceu na Alemanha do século passado, da mesma forma que
ideologias muito parecidas estão atualmente florescendo no Brasil, graças a um
sentimento disseminado de medo, que é intencionalmente cultivado no coração das
pessoas. Basta lembrar que o slogan da campanha eleitoral de Hitler apelava
diretamente a esse medo: foi eleito graças à promessa de conseguir um emprego
para cada alemão... e um marido para cada alemã! Hoje uma promessa tão
fantasiosa provoca risos, mas na época as pessoas levaram a sério. Assim como
hoje levam a sério promessas igualmente fantasiosas, mas que de alguma forma conseguem
apelar a esse medo.
E ao transmutar o medo em
ódio, existe todo um aparato ideológico para dar uma aparência de virtude,
patriotismo e até de religiosidade a esse ódio. É quando a pessoa começa a se
sentir superior ao objeto de seu ódio (que no fundo é apenas medo disfarçado),
é que esse ódio se transforma em nazismo. Quando um homem se sente virtuoso, um
autêntico “cidadão de bem” ao exercer o ódio contra outro ser humano, esse é um
sinal claro de que mais um nazista surgiu no mundo.
“Olhe quantos livros já foram escritos a
respeito do Holocausto. Qual o sentido disso? As pessoas não mudaram... Talvez
elas precisem de um maior e mais novo Holocausto.” (Art Spiegelman)
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FAVELA GÓTICA liberado na íntegra no site da Verlidelas Editora:
https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica
Durante
esse período de pandemia, em meio a tantas incertezas, temos uma única
garantia: a de que nada será como antes. Estamos todos tendo a oportunidade
preciosa de participar ativamente na reconstrução de um mundo novo, mais
luminoso e solidário.
O
livro Favela Gótica fala justamente sobre “a monstruosidade essencial do
cotidiano”, em uma história cheia de suspense, fantasia e aventura. Ao nos
tornamos mais conscientes das sombras que existem em nossa sociedade, seremos
mais capazes, assim como a protagonista Liana, de trilhar um caminho coletivo
das Trevas para a Luz.
A
versão física de Favela Gótica está à venda no site da Verlidelas, mas – na
tentativa de proporcionar entretenimento a todos durante a quarentena – o autor
e a editora estão disponibilizando gratuitamente, inclusive para download, o
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Book
trailer
Entrevista sobre o livro na
FM Cultura
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