sexta-feira, 27 de maio de 2022

AS PRECIOSAS (E ÀS VEZES PERIGOSAS) DICAS DE STEPHEN KING SOBRE A ESCRITA

 


Resenha do livro “ON WRITING” (“SOBRE A ESCRITA”) de Stephen King

Eu tinha de 15 para 16 anos quando li uma de minhas histórias favoritas de Stephen King, “O Corpo”, que depois renderia um filme igualmente bom, “Conta Comigo” (https://youtu.be/-0jDyn5thTY). Por essa época eu já sabia que queria ser um escritor, o que explica que a frase mais marcante que li no livro tenha sido:

“Um pouco de talento é uma coisa boa para se ter se você quer ser um escritor. Mas a única exigência real é a capacidade de lembrar de cada cicatriz.


O que lembro até hoje foi o desalento que senti ao ler essa frase. Meus olhos buscaram imediatamente uma cicatriz que tenho no joelho, que eu recordava ter sido causada por uma queda de bicicleta quando eu tinha 7 ou 8 anos… e apenas isso. Por mais que me esforçasse, não consegui me lembrar de mais nenhum detalhe a respeito dessa cicatriz.

Só muito tempo depois é que fui perceber o quanto essa frase do Stephen King me marcou. Aquele que na época eu considerava o melhor de todos os escritores havia decretado, em outras palavras, que me faltava o ingrediente principal para me tornar um escritor! O trauma foi tamanho que no primeiro livro que escrevi, “O Sincronicídio” (http://youtu.be/Vr9Ez7fZMVA), muitos anos depois, a trama gira em torno de um homem que sofre uma lesão cerebral que o torna incapaz de recordar qualquer fato que aconteça… na mesma medida em que intensifica seu poder de imaginação. Pois esse foi o caminho que encontrei para lidar com o decreto real de meu ídolo, sem abrir mão de meu grande sonho: onde me falta memória, sobra imaginação!

 


Achei importante compartilhar essa história como uma advertência aos jovens aspirantes a escritor que venham a ler “Sobre a Escrita” de Stephen King. O livro traz valiosos insights e convites à reflexão, mas se for levado a sério demais, como algo tipo uma “Bíblia Sagrada do Escritor”, pode acabar não gerando inspiração e motivação (como certamente foi a intenção do próprio King), mas desânimo e frustração.

Vou citar três exemplos em que eu pessoalmente (e com humildade) discordei das afirmações de Stephen King sobre a arte e o ofício de escrever. Logo no início ele diz que é importante terminar o primeiro rascunho de um romance (mesmo os volumosos) no prazo de três meses. Para conseguir essa proeza, King impõe a si mesmo uma meta de 2.000 palavras por dia, que ele só deixa de cumprir diante de “terríveis circunstâncias”.

Logo no início da pandemia (antes de ler esse livro) eu resolvi adotar um método parecido, como forma de me estimular a continuar escrevendo em um momento tão deprimente. Adotei a seguinte resolução: a cada 24 horas que eu respiro o ar da Terra, devo à vida 1.000 palavras escritas. De lá para cá tenho levado essa resolução muito a sério, chegando ao ponto de criar uma planilha no excel para acompanhar diariamente o meu progresso. Consegui acumular um saldo positivo de 7.000 palavras, quando subi a meta diária para 1.100. Bastaram alguns poucos dias sem escrever para me deixar inadimplente, e ao ficar devendo 7.700 palavras voltei às mil por dia. No dia de hoje (27/05/2022) meu saldo é de -100 palavras.

Novamente, conto essa história para mostrar como essa meta deve ser pessoal. Alguns colegas escritores acharam minhas mil palavras por dia excessivas, da mesma forma como hoje acho as duas mil de Stephen King ainda inatingíveis. Se eu for medir o meu valor como escritor pela capacidade de bater essa meta (além daquela coisa de lembrar da história de cada cicatriz…), o mais provável é que acabe desanimando e desistindo de escrever.

Minhas duas objeções seguintes são mais veementes, devido à veemência do próprio King. Primeiro ele afirma (de modo cômico, mas também enfático), que todos os advérbios devem ser cortados de um bom texto. O princípio desse ensinamento é válido (“não conte, mostre”), mas não deve ser encarado com exagero.

Também achei exagerada (e mais nociva) a aversão de Stephen King ao “enredo”. Para ele, escrever deve ser como escavar um fóssil, ou seja, retirar de uma área oculta da mente algo que já está lá, completo e inteiro. E mais ainda: retirar com cuidado, usando escovas mais que pás, para não danificar a frágil integridade daquilo que está enterrado.

 


Esse é um processo válido, mas certamente (olha o advérbio!) está longe de ser o único processo válido. Em defesa do enredo, vou citar um único livro: “Sobre Meninos e Lobos”, de Dennis Lehane, uma obra magistral sobre as consequências de nossas ações (e que também rendeu um filme sensacional, dirigido por Clint Eastwood: https://youtu.be/rW7n3PsFd8U). Uma história como essa seria inconcebível sem enredo, pelo método da “escavação de fóssil”. Isso para não mencionar todos os livros que já foram escritos seguindo “a jornada do herói” (https://youtu.be/Stdko2NIUNI), por exemplo.


O problema todo é que Stephen King pode ser terrivelmente convincente. E quando ele diz que o certo é escrever dessa ou daquela forma, isso periga virar uma lei inalterável na cabeça do leitor. Então, em resumo, amei ler esse livro sobre a arte de escrever, mas acho que um título mais adequado teria sido “On My Writing” (“Sobre a Minha Escrita”).

Se você escreve ou pretende escrever e ainda não leu esse livro, leia! Mas leia buscando a cada momento verificar se aquilo reverbera como verdade em seu íntimo. Pegue o que for válido e descarte o que não for. E faça o mesmo com essa minha resenha, obviamente…


Feita essa ressalva, o livro é maravilhoso! Durante a leitura, fui copiando as dicas mais interessantes, e dentre essas separei as que mais gostei para encerrar:

“Duas ideias anteriormente não relacionadas se juntam e criam algo novo sob o sol. Seu trabalho não é encontrar essas ideias, mas reconhecê-las sempre que aparecerem.”

“Percebi que quase todos os escritores de ficção e poesia que já publicaram uma linha foram acusados  por alguém de desperdiçar seu talento dado por Deus. Se você escreve (ou pinta ou dança ou esculpe ou canta, suponho), alguém vai tentar fazer você se sentir mal com isso, e isso é tudo.”

“Escreva com a porta fechada, reescreva com a porta aberta.”

“Os parágrafos são quase tão importantes por sua aparência quanto pelo que dizem; são mapas de intenção.”

“A descrição é o que torna o leitor um participante sensorial da história. Uma boa descrição é uma habilidade aprendida, uma das principais razões pelas quais você não pode ter sucesso a menos que leia muito e escreva muito. Não é apenas uma questão de como fazer, percebe; é também uma questão de quanto.”

“Fórmula: 2º Rascunho = 1º Rascunho – 10%.”

“O momento mais assustador é sempre antes de começar. Depois disso, as coisas só podem melhorar.”

“Escrever não é sobre ganhar dinheiro, ficar famoso, namorar, transar ou fazer amigos. No final, trata-se de enriquecer a vida de quem lerá seu trabalho e enriquecer sua própria vida também.”


 

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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).

 

Facebook: https://www.facebook.com/sincronicidio

Instagram: https://www.instagram.com/prosaepoesiadefabioshiva/

  

 

 

5 comentários:

  1. Amigo FABIO, seu trabalho, sem duvida, tem me acrescentado muito. Suas resenhas mostram questões inquestionáveis. Certa vez me perguntaram: que é o escritor? No meu entender é um bisbilhoteiros que fica tomando conta da vida dos outros, às vezes escreve, outras não. E também, como escrever? Escreva uma palavra, que goste, por dia, que combine com a do dia anterior. Com o tempo, quem saberá?

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  2. Morro de curiosidade de ler esse livro, mesmo não sendo escritora (mas trabalho como redatora, que pode ser considerado algo parecido). ;)

    Isso de regras pode ser algo perigoso mesmo. Se levadas muito à sério podem até paralisar o trabalho de algumas pessoas. Acredito que sejam regras que funcionam para ele, mas não necessariamente para todo mundo, como você ressaltou no post. De qualquer forma, é sempre muito interessando saber como funciona a mente e como são os métodos dos escritores que a gente admira.

    Abraços!

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