domingo, 22 de maio de 2022

SEXO, PODER & RELIGIÃO: A LITERATURA PSICOTROPICALISTA DE JOÃO SANTANA

 


Resenha do livro “AQUELE SOL NEGRO AZULADO” de João Santana

Uma coisa é certa: “Aquele Sol Negro Azulado” vai pegar você de surpresa. Não há como antecipar o vendaval de situações estranhas, oniricamente conectadas, onde o realismo mágico se funde ao thriller tupiniquim. Não existe um mapa que guie o leitor seguramente em meio ao labirinto de referências e citações, que vão da alta literatura e da mais requintada filosofia às mais chulas anedotas de boteco.

Sejam quais forem as suas expectativas, esse livro vai surpreender você de alguma forma. É meio como experimentar alguma poderosa droga alucinógena: você sabe que vai embarcar em uma viagem mental muito louca, mas não tem como saber como será essa viagem. Foi por isso que, para sintetizar as impressões causadas pela leitura desse livro, imaginei a expressão Literatura Psicotropicalista: literatura psicotrópica e tropicalista.

É como diz um dos personagens do livro, a certa altura:

“Se eu lesse um romance contando isso que estamos vivendo, eu diria que o autor era louco ou de imaginação tortuosa.”

Não pense, porém, que essas viagens todas não passam de doideira. João Santana se vale do surreal e do simbólico para falar da realidade nua e crua. Suas alucinações são baseadas em fatos reais. É por essas e outras que amo tanto a literatura fantástica, que em minha opinião é a que melhor expressa a complexidade da vida. A vida é fantástica.

“Aquele Sol Negro Azulado” é um livro de muitas camadas. No primeiro nível, à flor da pele, temos o apelo sexual, tão pronunciado que chega a virar poesia em alguns trechos:

“E aquilo que antes falta não lhe fazia, ao penetrar preencheu-a por completo.”

“primeiro ela linguaferiu a glandeusabrindo.

genuflexo, arcoteso, ele languinundou delapétalaflor.”

“ele gozou, acho que gozei longorápido também.

falhei no brinquedo. umidaseivamiúda no meu travesseiro.

clitóris-satori.

sou mulher que ejaculei.”

Junto com a sensualidade, logo em seguida vem a sensibilidade:

“O amor estupra.”

“(…) todo corpo de homem após o amor dá-lhe pena, carinho de mãe, coisa tão frágil, pequenez exata de sua grandeza. Esses bonecos de inflar chamados homem, mistura intumescida de albumina e vento, quando murcham tornam-se flor.”

E assim é que, em meio ao bem-bom do sexo, nos deparamos com a perspectiva da morte, que funda toda a necessidade da filosofia:

“E foram mais quatro tiros, som abafado pelo silencioso, perfurando Madagascar como peneira. Ejaculação de balas, margem escura de um orgasmo. ‘Ah, deve ser essa a sensação dos homens quando gozam’, pensou Mila (…).”

“O ruim de matar, Mila, é que a gente passa o resto da vida em companhia do morto. Ele cola na gente como bicho-de-pé, que a gente nunca consegue arrancar.”

O livro traz ainda muitas tiradas interessantes, que ficam reverberando na mente após a leitura:

“E por que nós, brasileiros, tememos tanto a guerra? Tememos tanto que chegamos a pensar que nunca tivemos guerras. No máximo, concedemos ridicularizar ou malcontar batalhas de que participamos.”

“No jornalismo, a gente mente dizendo a verdade. E na publicidade a gente diz a verdade mentindo.”


A história é recheada por uma profusão de personagens bastante diversos, dentre os quais imagino que alguns prestam homenagem a pessoas reais. Tive a impressão, por exemplo, de vislumbrar a luminosa alma de Rogério Duarte (https://pt.wikipedia.org/wiki/Rog%C3%A9rio_Duarte) no ufólogo e quase xará Rosalvo Duarte. Até o próprio João Santana faz uma discreta e irônica participação na trama, seguindo a cartilha dos filmes de Hitchcock:

“Depois de conseguir o endereço de trabalho de J. Santana, seguiu para o escritório, imaginando que pudesse falar facilmente com ele. Na sucursal, foi informada de que o jornalista não podia atendê-la, pois estava numa reunião importante. Nenhuma surpresa, ele sempre fora muito pedante.”

Temos ainda, como pano de fundo histórico, o processo de Impeachment de Collor (veladamente citado), sobre quem o intrigante personagem Mister Y faz essa igualmente enigmática profecia:

“Foi bom que ele tivesse errado, Vocês deveriam agradecê-lo e pagá-lo pelo seu roubo. Do contrário, ele os teria levado à guerra. Sorte de todos vós, que ele tenha tido, primeiro, essa guerra particular da ganância e tenha sido por ela derrotado. Do contrário, ele os levaria para uma tragédia maior, a carnificina, a guerra entre irmãos e entre vizinhos.”

Contudo a guerra parece ser o destino inevitável do Brasil, na cosmovisão do protagonista Carlos, ao refletir sobre a Amazônia:

“Ali estão as maiores reservas de madeira viva e águas puras do mundo. Hoje a briga é pela madeira. E quando começar a guerra da água? (…) eles não vão esperar a escassez para começar a grande invasão, para começar a grande guerra. Hoje em dia, as guerras não começam pelo motivo verdadeiro: uma guerra falsa sempre se antecipa à guerra verdadeira (…). Portanto, haverá, sim, uma guerra pavorosa, antes da guerra da água.”


Com assustadora lucidez, o autor antecipa questões que só se tornaram mais e mais relevantes desde a publicação do livro, em 2002:

“Essas matas, brilhante imbecil, são o bem mais precioso que temos. Preciosidade dupla e atemporal: elas impediram, durante séculos, que virássemos invasores de outros povos ou que fôssemos por eles invadidos; impediram que crescêscemos pro lado de cá, trazendo o país às costas, com as nossas cidades feias e decadentes; e dentro de pouco tempo, não se espante, essas matas serão mais valiosas do que ouro. E serão valiosas apenas para se manterem intactas, para ficarem como estão. Como se fossem quadros de Van Gogh, de Rembrandt, nas mãos de colecionadores milionários, que não os têm para desfrutá-los, apenas para possuí-los.”

“O que é o Brasil para qualquer brasileiro? Aliás, o que é seu país para qualquer nacional? Um sentimento vago, abstrato, difuso, povoado apenas de uns pedaços de paisagem (poucas, pouquíssimas), remendos de memória num roupão oficial, um grupo de amigos, um punhado de inimigos, a sonoridade de uma língua, alguma música, um ritmo e uma sensação estrangeira com o resto do mundo.”


 

Ler esse livro me fez descobrir curiosas conexões com o autor, pois muito do que eu disse aqui nessa resenha poderia ser dito de meu próprio livro “O Sincronicídio” (http://youtu.be/Vr9Ez7fZMVA). E o que vem a ser, afinal, “aquele sol negro azulado”? Só lendo o livro para saber…


 
  

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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).

 

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