Odeio funk! Muitos dizem. Mas consideram o magistral funk original, os The Jackson Five dentre outros? Consideram haver pouca opção cultural nas periferias?
Odeio rock! O mesmo. Considera-se haver desde rock gospel com mensagens edificantes até o rock sujo mais inconsequente e alcoólatra possível?
Afinal, qual o interesse em se conhecer a trajetória de uma banda de rock nacional? História, este interesse, muito portanto. Quem detesta samba procure saber de sua origem histórica e se surpreenderá, o mesmo com o Blues estadunidense, o Jazz, e por aí afora.
Passagens históricas. Bem a calhar para a banda, um encaixe perfeito ao procurado esoterismo enquanto temática do Imago Mortis. Impagável, memorável, talvez um anticristo, algum deles, provável, a passar pelo planeta Terra, ou não, ao menos para aqueles que acreditem de fato em anticristos. Ou em Cristos.
Trata-se de Nolavo de Barbalho. Vocês podem imaginar de quem se trate embaralhado por letras e energias astrológicas ultradireitistas e ultraconservadoras. Lá está ele dentre o histórico da banda.
História do Brasil, sim, também, o progenitor dos fundadores da banda exerceu função, tal quais milhares de outros trabalhadores, junto a uma tal firma multinacional recentemente amaldiçoada pela opinião pública, uma tal Odebrecht. História portanto.
O livro é composto por testemunhos de jovens adultos, cheios de paixão e de tesão pela vida, leia-se amor. Estão cheios de suposta saúde e energia, espertos, ligados ao mundo. São os relatos de nossas épocas juvenis que não voltam nunca mais, relatos muitos deles pitorescos que marcaram toda uma geração de décadas passadas.
Uma cópia fotográfica em papel preto e branco, as fitas de áudio magnéticas enroladas, usadas em gravações. Artefatos únicos de cada tempo, cada geração de cidadãos consumidores de cultura. Relatos do livro.
Também o mais emotivo há no texto da obra, a ansiedade jovem e o frio na barriga ao se deparar com um ídolo vivo do mundo do rock, coisas assim que se fazem merecidas ao registro textual e instigam o leitor a conhecer os desfechos imprevistos de cada uma das estórias contadas.
Os clássicos e clichês dos excessos do rock, uma vida agitada com o pé direito enfiado no acelerador da possante máquina turbo de pneus fritando o asfalto selvagem. Algo assim.
Coragem. Todos transformam-se em frágil vidraça às pedradas ao adentrar em polêmicas. "Nisso uma mão gélida o agarrou / Fazendo estremecer o pobre rapaz / Era a defunta, que os olhos abrira / E disse numa voz rouca: “Quero mais!”.
Acima nada menos do que a descrição de um ato de necrofilia em uma das letras de música da banda. Qual seja: transar com mortos. Coragem, ousadia ao menos.
Jovens em grupo, em bando, em banda, assim agiam. Os jargões inevitáveis, coisas que aprendemos quando moleques na rua, coisas que inventamos com a finalidade única de gargalhar cada vez mais, lá quando novos, gargalhar histericamente se possível for, lá atrás no tempo vital quando éramos verdadeiros sacos de risadas.
Jargões inventados pelo Imago Mortis, frutos de uma convivência íntima que, muitas vezes, traz nuances que somente os próprios protagonistas entendem. Tal qual o termo "Guidable" dos integrantes da banda punk Ratos de Porão, algo só para os iniciados. Transformam-se tais jargões íntimos numa espécie de código secreto, uma comunicação subterrânea, ágil e bem conveniente em situações de apuros. A conferir no livro.
"Vamos tentar fazer a música mais triste do mundo. Uma música tão triste que deixe a pessoa com vontade de se matar". Que meigos! Este era o espírito inicial da banda. Daí se depreende muita coisa, inclusive o caso verídico de ao menos um suicídio alegado.
Assim relatam no livro: "Mas será que nossa música não ajudou ele a querer se matar? / O cara devia ter vários problemas (...) Não tem como dizer que foi por causa de nossa música que ele se matou". Se sim, não foi o primeiro caso nem será o último evento a forçarem a barra para uma inter-relação entre a música em geral e as fatalidades muito humanas, seres falíveis que nós todos somos.
Outras temáticas, acreditem, ainda mais polêmicas: "Depois de muita conversa e chororô, decidiram pelo aborto. Não foi difícil encontrar um local para fazer a 'microcirurgia', como era eufemisticamente chamada na clínica da Rua Bambina, em Botafogo, que funcionava clandestinamente à vista de todos".
Coragem ao abordar intimidades bastante delicadas, adentrar em fundamentalismos-religiosos, práticas que seriam condenáveis por dez em dez crentes fanáticos nos dias de hoje.
"Ficou o vazio. Mesmo tendo parado de rezar, Fabio não conseguiu se livrar tão facilmente da culpa católica. Ele tentou transformar essa ressaca moral em uma música, que depois ganhou um tocante solo de violão".
Fabio Shiva não foge a sua alma literária. Faz citações de livros clássicos e de autores. "O Fim da Infância", um dos capítulos do livro, é título de obra-prima de 1953 do britânico Arthur C. Clarke, autor e corroteirista, ao lado de Stanley Kubrick, do magistral "2001: Uma Odisseia no Espaço".
Ainda, o autor intercala ao longo do livro algumas metáforas literárias mais eruditas, tal qual uma delas advinda de obra complexa e de difícil digestão, o clássico Ulisses: "Com a paciência de Penélope tecendo a mortalha de Ulisses".
Certamente para a galera pós-internet soa enigmático, não é o mesmo do que falar no dia a dia contemporâneo um "Com a magia de Harry Potter apontando a sua varinha de condão para o malvado vilão " ou algo assim.
O que dizer então de "Aqueles dias passados em Salvador, os dois se sentiam um pouco como Odisseu de volta à Ítaca. A leitura do poema de Homero havia causado um grande impacto nos dois".
Paixões literárias são assim, tais quais paixões, por definição têm potencial ao prazer e a dor, antagônicos, e às vezes simultâneos. "Futuramente Fabio também ficaria obcecado por um livro relacionado com a saga de Homero 'Ulisses', de James Joyce (...) uma impressionante e enigmática obra-prima da literatura".
Uma paixão, sem dúvida. Sobre William Shakespeare, para Fabio Shiva "Mas toda vez que lia aquelas linhas iniciais era de tal modo tomado pela emoção, que se via obrigado a fechar o livro, com o coração transbordando de beleza e poesia e com lágrimas fervorosas aflorando-lhe dos olhos".
Maior sensibilidade impossível, algo a princípio pouco imaginável pela sociedade padrão vindo de um roqueiro fã de heavy metal. Assim ocorreu, por paixão, Fabio Shiva viria em breve futuro a dedicar tempo e energia especiais à literatura e aos livros em geral.
Música. Música com eme maiúsculo. A versão de Imago Mortis para "Deus lhe Pague" de Chico Buarque é de enorme bom gosto e mais do que conveniente. A espetacular poética de Chico muito diz nesta letra, como tudo sempre oriundo deste autor, que coroa esta sua obra específica de fato com uma atmosfera musical bastante sombria, beirando o melancólico.
Dá a entender ao ouvinte que a miséria e o sofrimento humano devem ser encarados com alta resignação e até mesmo com satisfeita gratidão, ao menos por aqueles que se professem crentes a alguma fé em particular.
Mais uma de tantas vezes há as similitudes quanto aos relatos de integrantes de bandas de rock mundo afora ao abordarem com constância a temática profana. A recorrente obsessão dos aventureiros do estilo musical quanto aos indizíveis e pesados pesadelos noturnos. Foi esta a justificativa, uma delas talvez, de um dos vovôs do rock dito satânico, Ozzy Osbourne.
Ao flertar com demônios, o que muitos tentam em maior profundidade é o efetivo contrário, o exorcismo, de forma metafórica talvez, talvez não, tentam o expurgar taxativo de seus próprios pesadelos e obsessões noturnas, uma arriscada e perigosa autocura.
A intermediação de arte crítica e criativa da música adentrando em tais sortilégios e energias etéreas ficaria pois ao encargo de tal façanha intradimensional. A abertura temporária e ritualística de um portal metafísico talvez, o ousado e petulante flerte com demônios e artes do ocultismo seria portanto uma espécie de blefe perspicaz. Muitos assim já se arriscaram, nem todos retornaram sãos.
Algumas passagens do livro dão ideia da frutífera capacidade de ambientação textual do autor: "Vamos subir para o escritório – disse o dono da Levahard – conduzindo os dois até a sobreloja. O tal escritório poderia ser mais apropriadamente denominado de sala de estoque, com pilhas e pilhas de CDs ameaçando desabar por cima dos visitantes. Laércio indicou duas cadeiras defronte a uma mesa atulhada de papéis, acomodando-se na cadeira giratória por detrás dela, como um grande soberano em seu legítimo trono".
Ou em "A suave brisa noturna em nossos cabelos, vendo, ouvindo e sentindo o eterno balé das ondas e tendo, como substituto para a chama inclemente do sol, o olho vazado da lua crescente a nos fitar de um céu sem nuvens". Belo!
Não faltam também pitadas generosas de um sagaz humor negro: "O que aconteceu com o vocalista Evandro Rivera? / Depois que a gravação acabou, nós demos um tiro na nuca dele e o enterramos nos fundos do Estúdio Manhattan". Na mosca!
No livro, denota-se que os jovens acreditaram de fato e de direito na proposta de integrarem uma banda musical coesa e de emplacarem uma carreira artística no rock desde o início. Em específico em uma vertente do rock polêmica e sujeita às repreensões e polêmicas, uma opção voluntária em abordar aspectos caros ao fundamentalismo-religioso e a moral de fé dogmática.
Os relatos dão conta de uma grande parcela de investimentos individuais e coletivos em tempo, energia, e também investimentos monetários, muitas vezes com claros prejuízos, tão comuns dentre artistas apaixonados em suas buscas por se firmarem em carreira. São portanto relatos intensos de gente determinada em busca de seus sonhos e paixões mais imediatos.
Aditivados por uma música energética tal qual o rock, nada menos do que aventuras mil e buscas incessantes por diversão e por gargalhadas são esperadas. Não é diferente em outros grupos de gente energizada, mas talvez a parcela estatística dos roqueiros seja ainda mais prolífica e criativa.
Vejamos: "Então foi a vez de Duarte, dormindo de boca aberta, que acordou engasgado com uma colherada de maionese (...) O limite foi ultrapassado quando Felipe Crioulo não despertou junto com os outros e teve a cabeça lambuzada com azeite de dendê. Quando a turma saiu naquele dia para curtir o carnaval, e o sol começou a bater...".
Intimidade estreita entre os integrantes da banda, sem dúvida, e é de se imaginar a intensidade e repulsa a, nada menos, meter maionese pela boca ou azeite pelos cabelos de alguém dorminhoco.
O livro não deixa despercebidos aspectos da vida dos integrantes da banda que, tais quais as vidas de todos e todas, não são recheadas somente de momentos agradáveis.
Fabio Shiva relata intensos momentos sentimentais que culminaram inclusive em uma condição física severa em seu organismo, e que lhe custou três episódios de eventos cardíacos que puseram em cheque o jogo vital que todos e todas travamos rumo a um futuro mais sereno e organizado em idade avançada.
"Quando a crise eclodiu, muitos dos funcionários mais humildes recorreram ao carismático analista de RH em busca de orientação e consolo (...) Ele ouvia, impotente, todos aqueles relatos de humilhações e sofrimentos, sem poder fazer muita coisa (...) Essa rotina estressante não demorou a cobrar seu preço. Fabio começou a apresentar vários problemas de saúde de fundo psicossomático".
"De segunda a sexta, Fabio precisava dedicar 14 horas por dia (...) Passou a dormir duas ou três horas por noite, quando muito".
Poucos aguentariam. Ao líder do Imago Mortis boa parte do tempo era dedicado à profissão oficial, contudo pela paixão e crença no rock, não abandonou em paralelo as participações junto à banda. Aí inclusos aditivos lícitos e ilícitos combinados a tão parco repouso e refazimento de corpo e alma com as suficientes e necessárias horas de repouso e comedimento.
Estas ocorrências de saúde ao longo do tempo da narrativa certamente lapidaram o caráter do autor, assim o fariam a qualquer pessoa, em especial a um artista criativo, portanto naturalmente mais sensitivo. Acrescenta-se o ingrediente do tratamento especial Imago Mortis às temáticas mórbidas, esotéricas, às questões de passagem carnal, mundo espiritual e afins.
Muitos do ramo já disseram: "Música é tesão, não competição". Fato.
Um trecho emblemático e sucinto no livro sobre a questão de virtuosismo musical, a seguir.
"A única evolução que essas bandas buscam, se tanto, é a proeza física. Fazer os vocais mais e mais agudos, os solos de guitarra com mais e mais notas, a bateria mais e mais rápida. Isso para mim não é música, é competição esportiva".
"Se você achou isso trapaça, imagino o que vai pensar de outros recursos do ProTools. Por exemplo, tem muita banda por aí que grava tudo na metade do andamento e depois dobra a velocidade, para parecer que tocam bem rápido / Mas o show dessas bandas deve ser um fiasco / Que nada! É só usar samplers nos shows, nas partes mais difíceis. O público nem nota".
Dignos de especial citação e coerente louvor:
O álbum Vida foi tema de uma dissertação de mestrado em 2018 “A Morte Como Acontecimento Semiótico – A Perspectiva Simbólica da Banda de Heavy Metal Imago Mortis”, de Bruno Pael dos Santos, pela Universidade Federal da Grande Dourados.
Semiótica, aventure-se quem puder. Recomendável, não é o que o nome possa parecer.
Outra: Em 2013 a revista Roadie Crew elegeu Vida como um dos melhores lançamentos do metal nacional e anos depois também houve tal citação no site Collectors Room.
O pináculo de uma banda de metal, tocar ao lado de ídolos, de bandas que enlouqueciam adolescentes e os inspiraram a adentrar o fantástico mundo rock. Algo assim, talvez dividir lado a lado algum prêmio internacional com os maiores ícones do ramo musical que você mais admira. Algo assim. Participar de um evento histórico, um multifestival na Europa berço do gênero heavy metal, o maior festival de todos os tempos.
Mistério, humor negro, sagacidade, descrição capciosa. Tudo isto haverá belamente descrito nas linhas finas do livro. Atente-se.
Obra recomendada a quem exerça o livre-pensar, a quem não tema e ouse se lançar os magistrais sobrevoos da alma, acredite-se nela ou não.
(Fotos acima e capa do livro: reprodução. Ilustrações: Rodrigo Trompaz).
Caso você se interesse por mais estórias impagáveis do rock em um pano de fundo político:
Hoctaedrom - A Banda Genocídio e Algumas Estórias Heavy Metal. De Rogério Puerta.
Gratuito em PDF e ePUB dantescamente apresentado por Eqüinátomo.
https://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=219852&categoria=M
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