Resenha do livro “TEREZA BATISTA CANSADA DE GUERRA”
de Jorge Amado
Eu já amava Tereza
Batista muitos anos antes de ler este livro. É que, como baixista da banda
Mensageiros do Vento (https://www.youtube.com/mensageirosdovento),
tive a oportunidade de participar de alguns shows memoráveis no circuito de
palcos do Pelourinho, batizados em homenagem a personagens de Jorge Amado:
Pedro Archanjo, Quincas Berro D’água e Tereza Batista. Curiosamente, já li duas
vezes tanto “Tenda dos Milagres” (que traz como herói o incrível Pedro
Archanjo) como “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água”. Mas o livro referente
a Tereza Batista, em cujo largo fizemos mais e melhores shows, era justamente o
qual eu sempre postergava a leitura.
Acho que eu desconfiava que seria uma leitura para lá de especial, que me marcaria demais, e por isso passava sempre algum outro livro na frente, até que chegasse o momento certo. Pois agora digo, por incrível que pareça: ao chegar à última página de “Tereza Batista Cansada de Guerra” lamentei já ter lido esse livro e não poder novamente experimentar a ventura de lê-lo pela primeira vez!
Parece exagero? Queria eu encontrar expressões mais grandiloquentes para louvar a genialidade desse livro! Uma obra sublime, completa e vasta como a própria vida. Em seu vigésimo primeiro livro, Jorge Amado alcança alturas dificilmente atingíveis até mesmo em seus outros livros. Tereza Batista já se tornou minha brasileira literária favorita, suplantando outras heroínas Amadas, como Gabriela e Dona Flor (para minha grande alegria, ainda não li Tieta…).
Todo mundo que estuda Jorge Amado na escola aprende que sua obra se divide em duas grandes fases. A primeira, de crítica social, vai do início de sua carreira literária em 1931 até a publicação de “Os Subterrâneos da Liberdade” em 1954. Quatro anos depois vem a ruptura com “Gabriela, Cravo e Canela” (uma de suas obras mais aclamadas), inaugurando a fase da crônica de costumes. O erro dessa divisão simplista é supor que Jorge deixou de tratar da desigualdade e da injustiça em seus livros, para se dedicar apenas à construção do “mito do bom baiano”. É lindo de se ver a evolução desses temas sociais – tão caros à alta literatura e a um mínimo senso de humanidade – ao longo da obra dele. E um dos momentos mais sublimes dessa evolução, ao meu ver, está justamente nesse colosso que é Tereza Batista.
Aqui temos um pouco de tudo, assim como na vida: um romance dramático extremamente bem construído, com idas e vindas no tempo mostrando a saga de Tereza Batista, desde a menina que é vendida pela própria família até a mulher empoderada e vitoriosa, ao custo de muitas batalhas. Lendo esse livro, dei gostosas risadas e me emocionei até as lágrimas, fui totalmente capturado pelo suspense da trama e vibrei com as reviravoltas e desfechos muito bem arquitetados. E o melhor de tudo é que, assim como na vida, tudo aparece misturado, mestiço, a ponto de não ser possível apontar com o dedo onde começa o drama e termina a comédia, onde o terror cede ao deboche, onde a tensão é aliviada por um suave lirismo.
E o encantamento não para por aí. Como uma narrativa por detrás da narrativa, temos um retrato vívido e intenso das mazelas de nosso Brasil e do mundo, transparecendo de forma natural e orgânica da pura contação de uma boa história. Tereza Batista, em sua condição triplamente estigmatizada de mulher, nordestina e prostituta, enceta sua muito digna e luminosa jornada da heroína enfrentando os desmandos dos poderosos, a tirania da polícia e a hipocrisia da sociedade.
Aqui ainda temos, tal como nos romances da primeira fase de Jorge, o desmascaramento das farsas socialmente construídas, como por exemplo:
“Para ele política era ofício torpe, próprio para gente de baixa qualidade, de mesquinhos apetites e espinhaço mole, sempre às ordens e a serviço dos homens realmente poderosos, dos legítimos senhores do país.”
Temos também a jocosa baianidade da segunda fase, que torna os livros de Jorge tão gostosos de se ler:
“Bunda é palavra linda, nádegas a mais feia de todas as palavras, benza Deus.”
E, como uma admirável mescla da crítica social com a crônica de costumes, temos ainda uma ironia ferina e sutil que evoca Machado de Assis em seus melhores momentos:
“Do ofício de dona-de-casa só não soube mandar empregados, tratar a criadagem com a exigida distância e a depreciativa bondade reservada aos domésticos e aos pobres em geral.”
Ler Jorge Amado me faz ter gratidão por ser brasileiro, me faz querer a cada dia ser um pouco mais baiano. Salve Jorge!
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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor
de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/).
Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).
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Instagram: https://www.instagram.com/prosaepoesiadefabioshiva/
É o estigma de muitas mulheres brasileiras. Ótima resenha.
ResponderExcluirSalve Jorge!
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