domingo, 31 de julho de 2022

O INSUPERÁVEL DELEITE DE LER UMA OBRA-PRIMA DA LITERATURA

 


Resenha do livro “A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER”, de Milan Kundera

Existem livros excelentes que se destacam em seu gênero ou categoria. Por exemplo, “O Assassinato de Roger Ackroyd”, de Agatha Christie, é um maravilhoso romance policial, enquanto “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Arthur C. Clarke, é uma sensacional obra de ficção científica. Há outros livros, no entanto, que são incomparáveis: são únicos e nos remetem a um mundo todo próprio. É nessa categoria muito especial que enquadro livros como “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, “O Mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder, “Laranja Mecânica” de Anthony Burgess e, agora, “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera: na seleta categoria das obras-primas da Literatura mundial.

A maior frustração de fazer a resenha de um livro desses é saber de antemão que vamos ter que deixar de fora a maior parte das coisas que nos encantaram durante a leitura. A medida de uma obra-prima é perceber que teríamos que escrever um livro do mesmo tamanho (no mínimo) para descrever tudo o que aprendemos ao lê-la. Sabendo desde já que pretendo ler novamente esse livro (e portanto, fazer outra resenha), fico um pouco mais tranquilo ao tecer esses comentários que, inevitavelmente, pecarão por omissão.



Mas o que faz de “A Insustentável Leveza do Ser” uma obra assim tão genial? Eu diria que, antes de mais nada, a imensa dificuldade que qualquer um deve sentir ao tentar resumir esse livro em poucas palavras. Kundera começa tecendo intrincadas reflexões sobre a ideia do “eterno retorno”, presente na filosofia de Nietzsche, enquanto vai nos apresentando a Tomas e Tereza, os protagonistas do que poderia muito bem ser considerada uma “história de amor”. Pois bem. Logo nas primeiras páginas o autor denuncia o caráter de invenção de seus personagens, conforme ele vai explicar bem depois:

“(…) os personagens não nascem de um corpo materno, como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta, ou sobre a qual nada ainda foi dito de essencial.”

“O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo.”

Ao contrário do que seria de se esperar, essa denúncia de que Tomas e Tereza são personagens inventados, que atendem a um propósito específico de desenvolver determinadas ideias, não os torna menos reais na mente do leitor. Muito pelo contrário: Kundera consegue a proeza de transformar o leitor em cúmplice de sua estratégia ao lhe conferir essa inusitada dádiva de espiar as maquinações internas do autor no próprio ato de criar seus personagens. Ao devassar o caráter ficcional de Tomas e Teresa, Kundera torna-os muito mais reais na mente do leitor.

E que temas são esses, que o nosso simpático casal deve explorar enquanto se engaja em uma autêntica “história de amor”? Uma das ideias principais que movem Tomas é “(…) o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca.”


Essa ideia, que parece central na obra de Kundera, aparece com destaque em pelo menos outra obra sua (a única que li até agora): a igualmente genial “Risíveis Amores” (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2020/12/risiveis-amores-milan-kundera.html), publicada mais de dez anos antes de “A Insustentável Leveza do Ser”, o que demonstra a permanência desse tema na mente do autor:

“Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado.”

“Em trabalhos práticos de física, qualquer aluno pode fazer experimentos para verificar a exatidão de uma hipótese científica. Mas o homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento.”

Mas e quanto a Tereza? Algumas passagens do livro nos dão conta da complexidade e da força dos temas representados por ela:

“Se a maternidade é o próprio Sacrifício, o destino de uma filha é a Culpa que jamais poderá ser resgatada.”

“O livro distinguia Tereza das outras moças, mas a transformava numa pessoa fora de moda. É claro que ela era ainda muito jovem para poder captar o que havia de ultrapassado em sua pessoa. Achava idiotas os adolescentes que passavam por ela com rádios barulhentos. Não percebia que eram modernos.”


E aqui tomo consciência do quanto estou simplificando algo que é bem mais vasto e complexo. Pois essa ideia do livro como algo fora de moda em um mundo progressivamente barulhento vai encontrar sua expressão mais bem delineada em Sabina, personagem que poderia ser entendida (de modo resumido e simplificado) como o terceiro vértice do triângulo amoroso formado com Tomas e Tereza:

“(…) a transformação da música em barulho é um processo planetário que faz a humanidade entrar na fase histórica da feiura total.”

“Desde então, ela sabe que a beleza é um mundo traído. Só é possível encontrá-la quando seus perseguidores a esquecem por engano em algum lugar.”

E até aqui não falei nem um décimo do que gostaria de dizer a respeito desse livro, que é também uma obra excepcional sobre o amor e suas contradições:

“Entre todos os amantes estabelecem-se rapidamente certas regras de jogo, das quais eles não têm consciência, mas que têm força de lei, e que não devem ser transgredidas.”

“Existem coisas que só podem ser conseguidas com violência. O amor físico é impensável sem violência.”

“(…) os amores são como os impérios: desaparecendo a ideia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela.”

“Os caçadores de mulheres podem facilmente ser divididos em duas categorias. Uns procuram em todas elas sua própria ideia da mulher, como lhes aparece em sonho, subjetiva e sempre a mesma. Outros são levados pelo desejo de tomar posse da infinita diversidade do mundo feminino objetivo.”

Outro tema fundamental nesse livro é o conceito de “kitsch”, que ganha em Kundera uma definição bem original:

“A objeção à merda é de ordem metafísica. Defecar é dar uma prova cotidiana do caráter inaceitável da Criação. Das duas uma: ou a merda é aceitável (e, nesse caso, não precisamos nos trancar no banheiro), ou Deus nos criou de maneira inadmissível.

Segue-se que o acordo categórico com o ser tem por ideal um mundo no qual a merda é negada e no qual cada um de nós se comporta como se ela não existisse. Esse ideal estético se chama kitsch.”


Anotei muitas outras citações que não vou utilizar nessa resenha, só para poder encerrar com essas, que falam de forma espetacular de um assunto muito caro ao meu coração, mas que só aparece no livro de forma secundária. Até as irrelevâncias de Kundera são geniais:

“Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.

Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: ‘Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas’, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via-láctea – talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca.”


“O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais.”


Gratidão à minha amada irmã poeta Neuza de Brito Carneiro, que ao saber que eu ainda não havia lido esse livro tratou logo de me presentear com um exemplar. Feliz de quem tem amigos assim!



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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).

 

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2 comentários:

  1. Eu preciso muito ler esse livro, mas nunca pego. Acho que vou esperar uma leitura conjunta.

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  2. Marcou-me muito. Após o filme fui atrás dos livros, este é de fato o clássico, mas tudo do Kundera é ótimo, adoro seu estilo um tanto pessimista e desesperançoso, um libelo ao carpe diem..... Saudações!

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