Resenha do livro “IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO”,
de Ailton Krenak
Enquanto eu lia esse pequeno grande livro, ficou reverberando na mente a percepção do quanto o “fim do mundo” é uma ideia atraente e até mesmo irresistível para o ser humano. Creio que em todas as sociedades humanas ao longo da história existiram histórias bem definidas sobre quando e como o nosso mundo chegaria ao seu final. Do Apocalipse ao Ragnarok, da Profecia Maia ao Fim dos Dias, as escatologias diferem apenas nos detalhes, sendo a essência sempre a mesma, como bem resumiu Raul Seixas: “Está em qualquer profecia que o mundo se acaba um dia” (https://youtu.be/YWs_nwV80As).
O que torna o momento que vivemos tão único na história da humanidade é que a perspectiva do fim do mundo não é trazida por mitos ancestrais passados de pai para filho, mas por prognósticos e deduções científicas, feitas a partir de fatos reais que estão ocorrendo no planeta. A eclosão da pandemia do novo coronavírus tirou de cena essas sombrias ameaças – que não deixaram de existir, apenas saíram do noticiário por um tempo. Listo a seguir as primeiras que me vêm à mente.
POSSIBILIDADES DE FIM DO MUNDO:
1) Guerra atômica
2) Aquecimento
global
3) Esgotamento e/ou
poluição dos recursos naturais
4) Extinção das
abelhas
5) Liberação do
gás metano que está sob as geleiras do Ártico
Penso que a maioria das listas de “Top 5 de causas para o fim do mundo” terá pelo menos três dos itens que coloquei acima. Notem que essas cinco grandes ameaças à nossa continuidade na Terra estão todas mais ou menos relacionadas entre si e possuem uma característica principal em comum: todas são direta ou indiretamente provocadas pela ação humana no planeta. E é aí que entra o conceito de “antropoceno”, que desempenha um papel central nas reflexões de Ailton Krenak:
“Se já houve outras configurações da Terra, inclusive sem a gente aqui, por que é que nos apegamos tanto a esse retrato com a gente aqui? O Antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia do que é humano. O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca mais profunda do Antropoceno.”
Krenak tem o dom de questionar as coisas mais óbvias, que damos como tão certas e garantidas que nem pensamos mais a respeito delas. Um de seus questionamentos mais viscerais é sobre o conceito de “humanidade”:
“A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história.”
“Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício do ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.”
“Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem – fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.”
“É um abuso do que chamam de razão. Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio.”
“Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar?
A ideia de nós, os humanos,
nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela
suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e
de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma
língua para todo mundo.”
“Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos.”
Outra imagem persistente ao longo da leitura foi a de Krenak como aquele menino do conto de fadas de Hans Christian Andersen, que não tem medo de gritar para todos que “o rei está nu”. E o escândalo é inevitável:
“(…) parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida.”
“Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: ‘Isso é algum folclore deles’; quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que esse dia vai ser um dia próspero, um dia bom, eles dizem: ‘Não, uma montanha não fala nada’.
Quando despersonalizamos o
rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é
atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem
resíduos da atividade industrial e extrativista.”
“Há muito tempo não existe alguém que pense com a liberdade do que aprendemos a chamar de cientista. Acabaram os cientistas. Toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas, da mercadoria. (…) É como se todas as descobertas estivessem condicionadas e nós desconfiássemos das descobertas, como se todas fossem trapaça.”
“O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda.”
Essa última fala de Krenak, aliás, é complementada pelo posfácio igualmente brilhante de Eduardo Viveiros de Castro:
“Assim, aqueles povos que fomos ensinados a ver como sobrevivências de nosso passado humano – povos forçados a ‘sobreviver’ no presente em meio às ruínas de seus mundos originários – se mostram inesperadamente como imagens de nosso próprio futuro.”
“Ele falava aqui especificamente do Brasil, então sob a ameaça, depois concretizada, da chegada ao poder de um governo brutalmente ecocida e etnocida. Mas sua inquietação irônica se estende, bem entendido, de todo o chamado ‘mundo civilizado’, hoje sob a dupla e conectada ameaça de um revival fascista e de uma catástrofe ecológica global.”
Mesmo diante de tantos pavorosos desafios, contudo, não devemos e nem podemos desanimar. Quando a realidade se apresenta escassa de sentidos para a vida, devemos buscar esperança e inspiração no sonho:
“Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades.”
“Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho. Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza (…). O sonho como experiência de pessoas iniciadas numa tradição para sonhar. Assim como quem vai para uma escola aprender uma prática, um conteúdo, uma meditação, uma dança, pode ser iniciado nessa instituição para seguir, avançar num lugar do sonho.”
“E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição da vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.”
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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).
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Fábio Shiva é uma pessoa muito sensível aos problemas existenciais, lendo muito a respeito. Suas resenhas são demais atraentes.
ResponderExcluirGratidão por sua Luz somando!
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