sábado, 27 de agosto de 2022

Jesus Kid, de Lourenço Mutarelli

 

 

"RResus", algo assim, provável mais correta esta pronúncia espanhola, tal qual Jorge vira uma "rrorje" aos hermanos castelhanos. 

 

Jesus Kid, uma saga western em 28 volumes, daqueles livros de bolso de papel meio amarelado, os que lá em terra ianque chamam pulp fiction.

 

Vários "algo assim" pois vai tudo de sua mente, sim, você leitor ou leitora. Sobrevoos infinitos de alma, universos paralelos, permita-se e se entregue às fantasias de Lourenço Mutarelli.

 

Fantasias ou não, quiçá seriam metáforas perspicazes de um cotidiano nu e cru de todos e todas nós, uma realidade mais do que presente.

 

O livro de Lourenço Mutarelli é sim, nada de absurdo ao se afirmar, sim, um exercício convidativo aos devaneios e criatividades, tais quais outros livros do autor. Devaneios nada tolos, para quem ache que todos os devaneios sejam necessariamente tolos e pueris.

 

 

Jesus Kid vem e vai na narrativa do livro, em algumas vezes é ele próprio a atuar, um pistoleiro saído de saga western, ele em carne e osso, talvez ele próprio quem dite mesmo a ação do livro de Mutarelli. 

 

Talvez. Talvez ele seja o próprio protagonista do livro, Eugênio, um escritor imerso em conflitos internos. Eugênio. Eu, gênio? Engana-se quem pense que gênio é coisa boa. Genial sim, um hábito assim chamar, mas gênio é em si, historicamente, um ente ou caráter mais associado ao Mal do que ao Bem, assim dizem.

 

Daí que uma pessoa, quando admiramos, deveria ser mais bem descrita como espirituosa ou iluminada. Uma pessoa geniosa, como muitos dizem, na gênese da palavra, é preponderantemente uma pessoa mais má do que boa. Chatices de escritor metido à besta. 

 

Euler é uma boa, belo nome masculino. Valeria algum escritor ou escritora assim batizar uma de suas proles ao menos. Eu amo ler, Euler, belo nome.

 

No livro não confundir um Lourenço que lá aparece, este o pobre coitado idoso enfermo. Talvez nem tão pobre coitado, a narrativa demonstrará por que, condição fisiológica relacionada às irrigações sanguíneas em extremidades-chave de seu enfermo senil corpo humano em dificuldades de movimento.

 

Quadrinista de mão-cheia, em recente publicação junto a Ferréz, de "Capão Pecado", o autor de Jesus Kid bem pode ter imaginado o texto do livro tal qual uma narrativa de roteiro de uma animação gráfica, desenho animado que seja, daqueles para público adulto, ou um HQ propriamente dito. Aos não familiarizados: História em Quadrinhos, HQ. 

 

 

Mutarelli há tempos se encontra dominando esta arte que detém uma boa dose de ocultismo e perspectivas subliminares em muitos dos casos. Um universo paralelo de fato, outra dimensão logo ao nosso lado, porém acessível apenas para os iniciados.

 

Um exercício ao devaneio não tolo. Diablo Kiddo, do Bem, pois Jesus Kid está mais para o lado do Mal, ele um pistoleiro sangue-frio. Injustiça talvez, Jesus Kid um justiceiro, higienizador de bandidos, extermina-os sem julgamento. 

 

Bem conveniente em dias atuais de Brasil neofascista. Seria talvez ele um representante do deus que está acima de todos nós e ao lado da Pátria amada Brasil.

 

Então Diablo Kiddo seria do Bem, supondo um Jesus do Mal, pistoleiro nato implacável de um bom western de sucesso em vendagens de livros de bolso de páginas grossas amareladas.

 

Diablo Kiddo, seu oposto, aqui se materializa e tenta colher bons e alvissareiros fluidos cristalinos.

 

No livro: "Muito boa aquela hora que ele confunde a cor das fichas de pôquer e acaba transando com a própria mãe, que era a dona do prostíbulo". 

 

Que raios o autor quis dizer? Várias interpretações de algo que, convenhamos, não deva tomar tempo para qualquer interpretação, algo que pode ser nada mais do que uma viagem em meio a maionese cor-de-rosa. Ou não.

 

Cenas descritas surreais, imagéticas e, aqui digo, deliciosas. Ou, nem tanta fantasia, um exercício excepcional em metáforas perspicazes. Por que não?

 


 

Diablo Kiddo tenta exercer o seu papel do Bem. O sujeito perde a aposta no pôquer por confundir as fichas e, como punição ou paga, vê-se obrigado a fazer sexo blasfêmico e desrespeitoso com a própria mãe. Ou, por outro lado, foi o ato sexual uma recompensa por ganhar a aposta, o que tornaria a transa ainda mais blasfêmica e desrespeitosa. 

 

Mas Diablo Kiddo insiste, afinal se define como do Bem. Tenta e tenta. Impaciente e desesperançoso, por fim desiste em dez minutos, impossível buscar explicação cristã para o desenrolar da cena em questão. 

 

Como raios vá se conseguir uma passagem emotiva e edificante, do Bem, ao se transar com a própria mãe? Ainda mais sendo isto uma decorrência de pura jogatina profana.

 

Diablo desiste, Jesus Kid é implacável, toma brusco o seu lugar de direito. Com ele ninguém pode.

 

Jesus Kid, o pistoleiro sangue-frio, acompanha o protagonista tal qual um demônio apoiado aos ombros. Demônio ou antidemônio. Imaginemos um oposto portanto, novamente um Diablo Kiddo, a tudo criticar no seu antagonista paradisíaco ao menos em nome de batismo, Jesus.

 

Diablo Kiddo portanto oposto a Jesus, a lhe fazer contrapontos, comentários objetivos frutos de reflexão mental sagaz e dosada ao racional, equilibrando o emocional e o racional.

 

Deixa pra lá, Bem e Mal estarão sempre em eterno e desgastante conflito dentre a Humanidade.

 

No enredo de Mutarelli, misteriosos comprimidos coloridos, betabloqueadores, dão uma temperada em todo o transcorrer do texto, da estória. Uma estória imersa em desfocadas e ocultas brumas etéreas, isto pode-se afirmar com razoável precisão.

 


 

"Olha, Eugênio, eu estou querendo filmar a história de um escritor, seu processo criativo, suas dificuldades e sua dor. A dor da criação".

 

[...] "Você vai escrever sobre a sua experiência, vai escrever sobre a dor da criação, dos três meses que viverá em sua clausura criativa, mas isso irá se tornar um roteiro cinematográfico. E, como disse o Máximo, cinema é ação" [...] "Não venha nos encher de conflitos internos e longos diálogos" [...] "Isso, não venha nos trazer um monte de verborragia. Queremos ação, porque cinema é ação".

 

Ação, o protagonista do livro precisa de ação vinda de Jesus Kid, para com isto rechear o seu roteiro de cinema: "Imagino a câmera acompanhando cada uma das cartas. Das mãos de Jesus até caírem dentro do chapéu. Tudo em câmera lenta. Ação refinada".

 

Seria tudo então um laboratório de escritor? Daqueles em que o profissional literato se mete em confusões mil para vivenciá-las na pele e mais bem descrevê-las em narrativas detalhadas e bem ambientadas dentre as páginas de seu livro em elaboração? Uma possibilidade, mais um de tantos talvez ou algo assim.

 

"Que tipo de livro você escreve? / Desses retangulares". Humor cáustico.

 


 

Assuntos cotidianos ganham densidade, tal qual o desaparecimento periódico de uma ridícula, mínima e módica tampinha de plástico de banheira de hotel. 

 

Utensílio módico sim, mas que desempenha enorme função, gigantesca necessidade a um ato nem um pouco desprezível, o preparo de um demorado banho morno perfumado em banheira de hotel.

 

Seriam de fato dilemas existenciais assuntos tão cotidianos?

 

"Tá legal. Eugênio, o negócio é o seguinte, nós queremos filmar a história de um escritor. Um escritor que se lança num projeto de escrever um roteiro para um filme. Filme este que falará de um escritor que se lançou a um projeto de escrever um roteiro para um filme. Caralho! Onde pode haver dúvida?!".

 

O protagonista Eugênio em reflexões: "Jesus vai embora. Nunca o vi tão frágil. Nunca havia enxergado a mortalidade em Jesus Kid. Isso me preocupou. Será que ele está morrendo porque o estou deixando de lado?".

 

Outra: "Desconhecia esse gosto amargo do teclado emperrado. Não desconfiava da artrose das mãos que não recebem ordens do cérebro. Cérebro covarde".

 


No livro de Mutarelli, o imagético quadrinista pode bem ser quase sempre evocado: "Parece um desses personagens de desenho animado. Ele é a mistura do capeta com a Penélope Charmosa. Pior é que não consigo reagir. Estou apavorado".

 

Ou trata-se de um imagético cinematográfico, uma outra arte, outra modalidade de cenário: "Para justificar a ação, imagino tudo em câmera rápida, como num filme que vi. Laranja mecânica. Tudo passa acelerado. Eu tomo café, banho, e almoço. Passo a tarde teclando e brindo a chegada da noite com Nurse e vodca importada".
 

Recomendado. Delicie-se. Se possível, leia antes o livro, saboreie o texto de Jesus Kid antes de sequer assistir ao trailer do filme com o excepcional Paulo Miklos. 

 

Saudações a quem se permite aos inspiradores sobrevoos da alma.

 

 

 

[Resenha de Rogério Puerta (o escritor metido à besta)]

2 comentários:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...