Por que Ferréz faz sucesso?
Foi colunista da revista Caros Amigos, matéria de capa da própria, e isto lá nos idos do ano 2000.
Clássica e indisfarçável Caros Amigos, não cabia num bocado de bolsas, tinha-se que dobrá-la e levá-la ao sovaco, tal qual nossos avós muito fizeram dentre o trajeto de magistrais bancas de jornais do passado, com seus jornaleiros falantes e sabedores da vida do bairro.
Trajeto dentre as bancas jornaleiras e as maravilhosas praças públicas de uma época que não volta mais, as praças para leitura e uma prosa amistosa e amena, para um simples e sociável jogo de dominó entre compadres.
Suas sombras e bancos sujos de folhas, os nossos avós de ontem, eles na época de meia-idade, ainda com grande energia, se distraindo com os jornalões, lutando com as folhas enormes e desengonçadas que o vento insistia em vergar.
Ferréz, nascido e criado na Zona Sul paulistana, região de Capão Redondo, fez e faz sucesso pois representa uma parcela populacional que tem pouca voz. Ainda.
Ainda, pois nosso país mudou muito recentemente com a atual onda neofascista importada dos EUA, Filipinas e partes da Europa. Com tais mudanças bruscas, os possíveis lados em embate avançam e também retrocedem.
À moça preta, pobre, moradora do Capão Redondo, faxineira de grã-finas do Brooklyn, à moça preta algum vento de mudança se fez sentir.
Frente as dinâmicas e instantâneas formas de dispersão de informação, ondas eletromagnéticas por toda parte, surgiram recentemente duas promissoras iniciativas para dar voz às pobres de periferia. Os chamados podcasts, habituemo-nos a este nome, só lá em um trecho curto do Capão as sedes dos podcasts 1daSul e Avesso.
As vozes da periferia avançam, como lá se diz, "Respeito é pra quem tem". Ou seja, chega-se na humildade, mas se racista bancar em cima, mete-se o pé na porta e entra.
Tais podcasts, a ONG Interferência, ações diretas de distribuição de cestas básicas emergenciais frente aos imprevistos dentre moradias precárias em locais precários.
Isto, e mais, tem o dedo de Ferréz. Ele portanto um autor que carrega em espírito um ativismo social. Não é pouca coisa. Ser portanto bem-sucedido veio por merecimento, que não se confunda com meritocracia.
Bem antes de sua participação na Caros Amigos, Ferréz ainda adolescente já fazia poesia em um ambiente hostil. Arriscou-se.
Poesia ainda é vista como intelectualizada. Mas por que se supõe que não haja intelectuais e gente perspicaz, curiosa, nas periferias?
Há, houve, e isto cada vez mais vem se firmando como regras e não mais como raras exceções.
Ferréz está entre os fundadores da dita "Literatura Marginal", aqui com letras maiúsculas, sim, pois senão já, irá por merecimento adquirir status de nome próprio.
Várias interpretações. Quem leu "Capão Pecado", "Manual Prático do Ódio", dentre tantos outros, nota explícito e intempestivo o caráter violento dos textos. Violência no sentido físico mesmo, criminalidade, estupros, drogas, brigas de gangues, a lei do cão do "Não há lugar aos mais fracos".
Outra interpretação, mais poética e intelectualizada, sim o gueto germina reflexão, é a interpretação de marginal em sentido de "às margens".
Vide as marginais do Rio Tietê e tantas outras marginais, que caminham à margem, ao lado, não na porção central.
Maravilhosos e instigantes significados: marginal e excêntrico.
Espetacular se definir como um ou uma excêntrica, ótimo isto, nada de pejorativo. Você, uma excêntrica, alguém que se situa nas periferias, nas margens, não no centro, não no padrão de aceitação de uma sociedade conservadora machista, racista, lgbtfóbica, neofascista.
Uma honra ser um excêntrico, marginal, no contexto geopolítico do Brasil do ano de 2022.
Deus foi almoçar, largou os controles, por alguns minutos deixou o painel imenso de manivelas, botões, pedaleiras, teclados, equalizadores, sintonizadores. Foi almoçar, se ausentou.
Cometeu um deslize, pois esqueceu-se, ele mesmo Deus soberano, esqueceu-se que algumas de suas criaturas sempre o questionam, não aceitam de bom grado o jugo divino inquisitório bem mais punitivo do que educativo.
Foi almoçar, deixou por instantes de transmitir o sinal eletromagnético televisivo na caixa de ilusões que há na maioria dos lares mundo afora, nas periferias marginais daqui, excêntricas, a caixa de ilusões da tevê Globo de Merval, Record dos pastores, SBT do ratinho, BAND do Datena.
Ao livro:
[...] Vou à TV, mesmo antes de lavar o rosto vou à TV, ligo, preciso parar de pensar. [...] Abriu os olhos, a TV estava ligada, a luz o irritava ainda mais, será que tinha entrado no portal? [...]
[...] Tá, você quer ver televisão? / Liga, liga a caixa que tem gente dentro. / Tô procurando o controle. [...]
[...] pergunta por que as duas televisões ligadas. / Porque minha pequena gostava, ela sempre fazia isso, e me acostumei. [...]
O Deus onipresente, onisciente, por um desleixo inédito, se fez ausente e desconhecedor.
Aí então grassa a lei do cotidiano, floresce o sobrevoo voluntário dentre outras dimensões de percepção, o adentrar de portais, o vivenciar as demais possibilidades de percepção e compreensão frente a uma realidade bastante questionável.
Deus ausente fomenta adentrarmos em dimensões outras, mais prazerosas, porém igualmente temerárias e danosas.
[...] Porque Deus fez o mundo assim. / Por quê? / Por que o quê? / Por que Deus fez o mundo? / Pra brincar com a gente. [...]
O livro é recheado de cotidiano, de cenas do dia a dia, de realidade, pragmatismo, e isto, em paralelo, com um pano de fundo algo fantástico, uma pitada bem dosada de um universo escamoteado habitado por hesitantes protagonistas da estória.
A imaginação e a criatividade agindo com suas fagulhas inexplicáveis de percepções irradiando ao corpo e mente:
[...] ter que pegar ônibus para voltar o angustiava, queria mudar a rotina, sempre o mesmo farol, o mesmo posto de gasolina, ao menos no ônibus daria para ir lendo, claro que ele pensou que iria sentado, pensou errado. [...]
[...] e depois cairiam na rotina, beijos cada vez mais raros, toques somente forçados, dizem que o sexo acaba quando se casa. [...]
O cotidiano por vezes trivial que enfrentamos é retratado no livro de forma bem ambientada, repleta de metáforas perspicazes.
A necessária visão que se deve ter ao ler o texto de um bom livro, liberdades infinitas à imaginação:
[...] Começou a reparar nos sacos de lixos em cada esquina, próximos aos postes. Postes que eram as árvores modernas rodeados por sacos de lixos, que podiam tomar o lugar das flores na nova paisagem, flores estas levemente beijadas por pássaros não orgânicos, feitos de folhas de jornais, que já serviram para vender apartamentos, escapamentos, mesas, fogões, verdades e candidaturas. [...]
E são metáforas não somente de ambientação, mas também as mais complexas metáforas comportamentais:
[...] ela acabou com toda chance de uma vida um pouco feliz, e hoje vive assustada a qualquer batimento numa porta vizinha e depois com os olhos ardidos de tanta TV e crochê, de tanto virar a cabeça, de tanto olhar pela janela, de tanto secar as lágrimas, que caem no álbum e danificam as fotografias de um tempo em que a felicidade não era uma promessa tão distante, [...]
Desde o início a estória instiga o leitor/a com dois mistérios que só se revelam ao final: a presença de um portal, dimensional, físico, ou seja lá o que o leitor/a imaginar ao longo do texto; e também a presença de uma colher, sim uma colher, de metal, ela mesma.
[...] “Se quiser saber a verdade, venha no endereço abaixo, e descubra o que tanto procura. [...]
Não faltam máximas deliciosas, simplórias talvez, mas sucintas e plausíveis:
[...] Se a felicidade é um ponto de vista, Calixto estava cego.[...]
[...] Os casos amorosos encheriam livros de Sabrinas. [...]
[...] Se o leão mata o animal menor, Deus está de que lado? [...]
Há também a paixão inegável do autor por HQs, quadrinhos, comix, como queiram, paixão que se materializa inclusive por meio de uma editora afim.
Tal paixão permeia muitas passagens do livro. São citações as quais, de fato, somente aos/as iniciadas alcançam:
[...] eu tinha que te falar uma coisa, ontem fui no sebo, cara, achei cada gibi louco que você nem imagina, vários Tex da primeira edição, e ainda uma raridade, achei uma ShowCase gringa, que tem história do Lanterna Verde. [...]
[...] a Ebal era tudo de bom. Editora assim não tem mais, a última foi a Opera Graphica, que fazia tudo com um amor fenomenal pela nona arte. Verdade, até os clássicos do Alan Moore ela relançou. [...]
[...] A fase dele no Super-homem foi show mesmo, [...] na era Frank Miller, já viu um cara entrar tão na moral e dominar tudo assim? E ele era só desenhista. [...]
[...] Superaventuras Marvel? [...] Verdade, mas o lote que tô levando para o cara é da Ebal mesmo, tem até a fase dele amarelo. [...]
No livro, e tratando-se do autor dele, o cafecolismo é mais do que suspeito. Não demorará e este neologismo se fará ao léxico. Algumas de tantas passagens afins no texto:
[...] Passou o café e depois despejou num pequeno copo um pouco, experimentou e gostou: forte e quase sem açúcar, algo como a fórmula da criação do mundo. [...]
Ferréz tal qual um Ernest Hemingway, este que perpassa boa parte de seus livros em uma bruma de vapores etílicos inegáveis, sim, drinks, copos, taças, libações que permeiam o desenrolar de suas narrativas.
Saborosos, coloquiais e aderentes textos de Hemingway, sempre um cocktail tropical e um copo ou taça ao lado dos protagonistas.
Hemingway sempre dotado de ocorrências descritas em seus livros de um jeito único, só dele, de quem as vivenciou em carne própria.
Algo assim parece ocorrer também com Ferréz, ele não um alcoólatra, mas cafecólatra, outro neologismo que não tardará a incorporar-se ao léxico.
Ferréz permeando os acontecimentos com doses generosas do preto líquido antes dito diabólico e perseguido por Papas:
[...] “Colocar o pó de café no funil e pressionar levemente, não recomendamos usos de outras substâncias que podem obstruir o orifício do filtro.” [...]
Café, café. Mas não qualquer um:
[...] Calixto toma a última golada de café, tem gosto de cabo de guarda-chuva, pensa ele, [...]
[...] eu bebia água com gosto de café num copo que nunca mais viu sabão. [...]
Café, mas também não de qualquer maneira:
[...] Quero um café preto, mas antes me vê um copo com água. [...]
O velho ditado: "A vida é tal qual uma rapadura, é doce, mas não é mole não".
[...] Eu tomo um café que está doce demais, uma coisa que não gosto é quando já vem tão adoçado, mas entendo que a amargura da vida moderna exige isso. [...]
[...] De manhã ninguém mais levava café, eu fazia uma vez por semana, mas ele nunca era muito forte, a cozinha me dava tristeza, me trazia lembranças que não continham açúcar. [...]
Aromáticos e convidativos cafés:
[...] chegou da cozinha com dois copos, um de água e um de café. Sentou no sofá, bebeu a água e sentiu o cheiro do café, [...]
Cafés que embalam e motivam:
[...] e a contar as histórias, eu pegava uma dose de café e ficava ouvindo, afinal também não tinha nada melhor pra fazer. [...]
Cafés que fazem parte da rotina:
[...] Todos os dias a mesma coisa, de manha um café SL na vendinha e no início da tarde um almoço PF acompanhado de um refrigerante [...]
[...] ela arrumava a casa, lavava o quintal, deixava toda a cozinha brilhando, o pote de café sempre cheio de pó, [...]
Cafés que trazem momentâneos contentamentos:
[...] chegava alguns minutos depois com um copo com café feito na hora, eu olhava pra ela com carinho, e o ciclo estava completo, isso foi o mais perto do que sei por felicidade, [...]
[...] certeza ela passaria um café bem fresco para ele e iria acordá-lo com um beijo, e ele diria: O velho café da mamãe.[...]
Cafés tomados em qualquer lugar:
[...] O café SL chega, com uma parte do dedo do balconista dentro do copo. Vejo a digital, o homem parece que não e bebe por cima dela. [...]
Cafés cafeinados, por óbvio. Abaixo, fora, boicote aos descafeinados:
[...] o café deixa muito agitado, geralmente acaba logo e a gente tem que ficar pedindo outro, não imagino uma mesa de bar toda cheia de copos de café enquanto um cara conta uma história dessas [...]
Café, uma dependência química lícita:
[...] Avistei um bar, cheguei no balcão e pedi um café forte, muito forte, embora o café nunca fosse forte o suficiente. [...]
[...] em nenhum momento falou da sua situação amorosa, quatro xícaras de café ainda não eram muitas, as pessoas passavam, eu tagarelava mais alto, ela mais tímida, ouvia mais do que falava [...]
Cafés filosóficos:
[...] O café quente caiu dentro do corpo, saiu do copo, a mão segurava o vidro moldado, o ser mudado segurava o copo. [...]
Os adendos "(sic)" dentre o texto são prá lá de desnecessários:
[...] Estávamos conversando café e tomando risadas, o dia se foi, [...]
Outro de tantos "(sic)" acima.
Cafés resolutivos:
[...] Foi para a cozinha, talvez fazer um café fosse uma boa válvula de escape, [...]
Cafés motivos de discórdia:
[...] o lugar é insuportável agora, e sua cabeça dói, ele xinga, não deu tempo dela nem olhar, a xícara voou na sua face, o café quente bateu, escorreu. [...]
[...] talvez um café quente, mas aí até ferver é outra briga contra o cobertor que cobre minhas pernas. [...]
Cafés que trazem esperança:
[...] a gente podia sentar um dia na beira de algum bar por aqui e tomar um café, eu pagaria um café por uma linda história, [...] Eu pagaria um café por um momento de esperança qualquer, nem que fosse uma fração de esperança, [...]
Cafés preparados com esmero:
[...] Ele chegou tarde, eu não vivo a relação como ele, eu não lavo louça como ele, nem faço café como ele, [...]
Cafés avaros:
[...] você nunca chega cedo, nunca paga o café e nunca está sério. [...]
[...] Eu mesmo preparo o café, eu mesmo tomo o café, eu mesmo mastigo o pão, e eu mesmo ligo a TV novamente. [...]
Cafés revolucionários:
[...] virou as costas, jogou o copo de plástico com pouco café no chão, virou a página da vida. [...]
Deu na conta. Café é droga lícita. Excesso, de tudo aliás, dá em merda na certa...
Em "Deus Foi Almoçar", ou, foi só tomar um cafezinho, que seja, os personagem por vezes estão com um pé no esoterismo.
Há passagens constantes que dão um indício de que existe algo além, multidimensional, certamente uma aura de mistério:
[...] convenceu ele que o mal não deve ser passado para outro, aí entrei na mente também e disse que era melhor ele usar o dinheiro que faria com os discos para o bem. / E ele engoliu? [...]
[...] você num existe, você é um personagem, pouco criativo, antiquado, melodramático, você será editado, seu filho da puta, será mudado porque não é original, nada é original, [...]
Saborosos, aromáticos, imagéticos, instigantes, desafiadores e fortificantes livros, sempre presentes na mente de qualquer escritor, seja materialmente ou de forma subliminar:
[...] Não era difícil vê-lo assim, radiante depois de ler um livro, queria contar a história, falava sobre o autor, numa sede por passar um pouco do que tinha vivido, parecia que tinha ido viajar e tinha muita novidade para contar. [...]
[...] O lançamento de um livro é um rodeio de abutres louvando uma mente capaz de mentir em tão alto grau que escreve e negocia. [...]
Um livro, papel, encadernado, alguns de segmentos internos colados, outros costurados, capas duras ou nem tanto, também aqueles de papel barato, amarelado, os que lá na gringa dizem ser pulp fiction, de tudo um pouco.
Tudo vale aos/as apaixonadas por folhear, sentir o papel nas mãos e os enredos pulsantes na mente:
[...] hoje ainda gosto de pegar em coisas de cobre, de folhear livros em que as páginas estejam amareladas pela reação da umidade com um produto, lembrando os velhos livros de montagens que ele trazia da empresa, o cheiro de long plays comprados em sebos, [...]
Um bom romance, ensaio, ficção, uma boa crônica que seja, melhor seria sua retratação em livro ou em filme?
Há estórias filmadas ainda melhores daquelas de seus livros respectivos.
Por outro lado, em grata e honrosa resistência, há livros absolutamente imbatíveis, dignos de superar os melhores atores, diretores e roteiristas de um prestigiado Festival Internacional de Cinema de Berlim:
[...] e quando alguém quer ler um livro ou ver um filme, não quer toda essa merda, sabe? Tô falando de sofrer, você quer rir, se emocionar, mas não passar para aquilo, o jornal das sete da manhã, cara, o jornal das sete já fode com tudo, não precisa o livro, o filme, ver o jornal [...]
Antidepressivo? Droga ilícita? Terapias alternativas, exercícios físicos, interações pessoais, chás, sexo... Que se experimentem bons livros. Em uma boa parte dos casos, resolve:
[...] e agora vem o mais louco, ele falou pra mim que tem um livro que fala tudo sobre o ventre negro do mundo. / E? / E? Cara! Esse livro pode ser a chave para a porta que a gente tá buscando faz tempo. [...]
(Mas, muito cuidado, sem falsos alarmes, há gente que diga que alguns livros podem levar o leitor/a à loucura...
Talvez sim, algum exagero, ou nem tanto, é mais um mito preconceituoso...
Em paralelo, ninguém tem a verdade absoluta. Sim, talvez, vide a Bíblia, Antigo Testamento em especial, este certamente já levou e ainda leva muita gente à loucura).
Não são poucos os que dizem, cientistas até mesmo, que uma mente equilibrada, organizada, tal a dos gênios, Einstein e outros, estas mentes em nada se importam com as aparentes assimetrias e as bagunças pueris:
[...] O barraco rodeado de coisas, tantos livros, revistas em quadrinhos, discos, um amigo uma vez lhe disse que ele gastava com muita coisa e não arrumava a casa, ele não soube responder, [...]
Olhos, visão gasta e atritada de leitores contumazes, uma única página sob má iluminação, de fato, mói nossos olhos quarentões ou cinquentões:
[...] Estava sentindo uma forte dor de cabeça, não havia bebido, o motivo podia ser uma página a mais de leitura. [...]
Portal, porta, passagem. O misterioso portal, vez ou outra, mas contínuo, dá as caras ao leitor:
[...] meus dentes estão ficando moles, meu cabelo parece mais branco, fico muito tempo me olhando, notando as rugas, parece que tudo leva a me fazer atravessar o portal. [...]
[...] No fim do ato de espremer os olhos, sentia que estava próximo de uma palavra, ou talvez uma frase que abrisse o portal. [...]
[...] Só havia uma certeza, a que estava ficando tudo muito estranho. Talvez tivesse atravessado o portal. [...]
O incômodo cotidiano, por vezes monótono e repetitivo de todos/as nós está sempre presente. Inabalável rotina, ademais imersa em dilemas existenciais tão nossos:
[...] Os vizinhos estão lá fora, e eu não consigo sair do sofá, o piso foi instalado errado, está inclinado para a esquerda levemente, e o telefone está quieto, e a televisão está ligada, no mudo, pois as pessoas que estão ali não sabem o que falam, elas são fantoches, são marionetes mortas, que, de vez em quando, fingem ser vivas, mas só quando o tempo mexe as cordas, [...]
[...] Hoje eu tô mal. / Mal como? / Muito depressivo, com vontade de morrer. / Para com isso, Calixto, o que é esse lance de depressão, isso é para o Jimi Hendrix, para o Kurt Cobain e esses caras americanos. / O que isso tem a ver, cara? / A depressão é estadunidense, eles é que são assim. / O quê? / É isso mesmo, nós somos contentes, olha o axé, olha o carnaval, o povo comendo pão o dia inteiro e tá pulando, festejando até em final de juniores. [...]
O aprendizado à duras penas, tentativa e erro, bem mais erros, aprendizados bem mais pela dor do que pelo amor:
[...] Pedi para meu pai me dar o manual de instruções da vida, pois nascemos sem nenhum, [...]
[...] sem passar de ano não ganharia o lindo robô, mas o detalhe do brinquedo é o que interessa, um pequeno botão que tinha nas costas, e isso seria uma solução simples para toda essa zona chamada de vida, sabe aqueles com on ou off, ou liga e desliga? Já pensou, rapaz, um simples botão, sem culpa, sem moralismo, sem julgamento, para essa pergunta? [...]
Dilemas de uma existência nossa questionadora, por vezes sistemática, por vezes relapsa, mas sempre atenta, sempre instigada por tudo aquilo que não compreendemos:
[...] Sistemático, até no banheiro, ele sente o atrito, sentado no vaso, onde coxas se apoiam e o resto fica vago, lê o informe de um frasco de sabonete líquido, em que está “traz equilíbrio e harmonia”, não acredita, como um sabonete pode crescer ao ponto de ousar pôr em seu frasco a palavra equilíbrio. Devia estar escrito: tira o fedor das mãos. [...]
O aguçado olhar e interpretação social de Ferréz, em quase na totalidade de seus textos, se faz presente, e não poderia se ausentar neste livro, mesmo e ainda que "Deus Foi Almoçar" não enfoque diretamente ocorrências de uma periferia marginalizada.
Mas, não fica nada distante disto:
[...] O pedreiro não notou a diferença, com cinco filhos nas costas não notava muitas coisas, o grau de importância era outro. Uma vez ele havia chegado e dito que tudo em sua casa era arroz e arroz, os meninos comiam arroz pra caramba, Calixto entendia que arroz era mais necessário para o pedreiro que a cor do verniz. [...]
[...] Tentaria dizer que Papai Noel é um velho porco capitalista, inventado para explorar, mas ela logo falaria que tem uma filha, que não pode dizer que não entra no McDonald’s porque eles pagam menos para um funcionário, que na verdade a menina só quer um brinquedinho, que pelos precários meios de produção certamente está contaminado, ou ela acharia que uma fábrica chinesa que cobra centavos por um brinquedo tem controle de qualidade suficiente para evitar a contaminação, e ele insistiria que eles são feitos por chineses explorados e [...]
"Deus Foi Almoçar" não é livro coloquial, cotidiano e de leitura tão simples. Há erudição, inclusive inalcançável aos não iniciados:
[...] estudava a deusa mãe Cibele e Ísis, outros que ressuscitavam e morriam como Mitra e Adônis, a fusão entre os cultos pagãos; conforme virava as páginas, a filosofia platônica e o moralismo hebreu iam resultando no aparecimento do cristianismo. [...]
É fato que, contemporaneamente, basta dois cliques em um buscador qualquer e quase de tudo, às vezes enviesado e com a profundidade de um pires, se tem à mão. Mesmo assim, aí uma hipótese, nota-se que Ferréz joga dados e testa o leitor/a:
[...] ele era tão comunicativo, o último papo foi sobre o diário de Crowley na visão de James Wasserman. [...]
Crowley é pouco mais conhecido, ao menos a quem curta rock, ou a quem optou por desvendar o ocultismo.
Wasserman bem menos, daí a hipótese, se me permitam, de supor Ferréz falando às vezes em cifras subliminares, a quem tenha os olhos de ver.
Teses nada conspiratórias à parte, deixe pra lá, Crowley e Wasserman são, muito provavelmente, de fato bem mais acessíveis do que Cibele e Ísis, Mitra e Adônis.
Ao derradeiro, em desenlace, arremate, afinal.
O que seria o portal, o que seria a insistente colher que aparece lá e acolá no livro?
Imagine o significado puro da palavra emoção.
Emocionar-se. Algo tal qual uma memória indelével em sua mente que lhe traga o mais indescritível prazer, aquele chip oculto que todos/as nós guardamos sabe-se lá onde profundo ao cérebro, mas que por alguns felizes relampejos amiúde lança fagulhas de luz em nossas vidas.
Espere emoção, sensibilidade.
A se conferir.
Mais do que recomendado.
Resenha de Rogério Puerta
Deus foi almoçar / Ferréz. - São Paulo : Editora Planeta, 2012.
À venda na loja 1daSul, no Capão Redondo.
Outra forma de adquirir:
Algumas referências de Ferréz:
https://www.youtube.com/channel/UCOviqmq2zRaigBxZfiD_D-w
https://www.youtube.com/c/PODCAST1DASUL
Para adquirir alguns dos livros digitais gratuitos de Rogério Puerta:
https://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=219852&categoria=M
Outras resenhas:
My Way - A Periferia de Moicano (punk Valo Velho):
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/search?q=valo+velho
Meditação para Crianças / A Menininha Azul (Fabio Shiva):
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/search?q=medita%C3%A7%C3%A3o+para+crian%C3%A7as
Diário de um Imago (Fabio Shiva)
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/search?q=di%C3%A1rio+de+um+imago
Paulo Freire - Um Educador Diferente (Varneci Nascimento):
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/search?q=varneci
Jesus Kid (Lourenço Mutarelli):
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/search?q=jesus+kid
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