domingo, 15 de janeiro de 2023

HERCULE POIROT ENFRENTA UM PERIGOSO SERIAL KILLER, ANTES QUE ISSO EXISTISSE

 


Resenha do livro “OS CRIMES ABC” de Agatha Christie

Não pela primeira vez, recorro a Agatha Christie depois de levar canseira de alguma leitura. Dessa vez fiquei alguns meses penando para ler um grosso romance policial da moda (sobre o qual falarei em uma futura resenha), até que, ao chegar exatamente à página 273 (mais ou menos a metade do livro), me dei conta: “Rapaz, esse livro tem a grossura de dois da Agatha Christie... e nem a metade da diversão!” Abandonei a leitura na mesma hora, e fui reler algum da querida Rainha.

Escolhi esse “Os Crimes ABC”, que acredito só ter lido uma vez antes. Gostei muito dessa releitura, que terminei em dois ou três dias. Aqui Hercule Poirot está às voltas com um misterioso antagonista, que tem a audácia de lhe enviar cartas anunciando seus próximos assassinatos! Logo toda a Inglaterra está em polvorosa por conta do assassino que parece ter uma fixação pela ordem alfabética, a começar pelos guias ferroviários ABC que deixa sempre na cena do crime, ao lado do cadáver de suas vítimas...

Só por essa breve descrição, imagino que as palavras “serial killer” surgem na mente da maioria das pessoas hoje em dia. O que torna “Os Crimes ABC” uma obra especialmente notável, pois foi escrita em 1936, quase trinta anos antes que a própria expressão “serial killer” tivesse sido utilizada pela primeira vez (o termo foi cunhado pelo investigador do FBI Robert Ressler durante a década de 1970).


Cheguei a pesquisar sobre assassinos em série famosos e em atividade até 1936, imaginando se Agatha havia se inspirado em alguma notícia de sua época para escrever “Os Crimes ABC”. Na história ela chega a citar Jack, o Estripador, que creio ter sido mesmo a sua principal, se não única referência. Pois fora o próprio Jack e uma sinistríssima viúva da era vitoriana, Amelia Dyer (que adotou e estrangulou mais de 400 crianças por dinheiro), encontrei apenas o igualmente infame Albert Fish, norte-americano que morreu na prisão de Sing-Sing em 16 de janeiro de 1936 (uma curiosa sincronicidade, pois “The ABC Murders” foi publicado pela primeira vez dez dias antes da morte de Fish, em 6 de janeiro de 1936). Mas a grande maioria dos monstros humanos que tornaram necessário que existisse o termo “serial killer” para defini-los só nasceu mesmo depois da publicação de “Os Crimes ABC”.

Saindo do território da brutal realidade e adentrando no terreno da fascinante ficção, o que achei particularmente impressionante é que, nesse livro, Agatha praticamente estabelece o que serão os principais clichês das histórias de serial killer: a obsessão temática do assassino, sua personalidade narcisista e arrogante, a disputa entre o assassino e o detetive, com provocações e armadilhas de parte a parte etc. Contudo a autora vai ainda além em “Os Crimes ABC” e utiliza toda essa parafernália do serial killer como apenas mais um elemento em sua trama de mistério... afinal, essa é acima de tudo uma história de Agatha Christie!

Diante do que foi dito, não resta dúvida de que “Os Crimes ABC” é mesmo uma obra ímpar não só dentre a extensa bibliografia de Agatha Christie, como na própria história do romance policial. À época do lançamento, um crítico muito sagaz definiu esse livro como “um divisor de águas”. Achei bem interessante essa conversa entre Poirot e seu fiel escudeiro Hastings, onde Agatha expressa de que forma essa história é diferente:

“—Sabe que se trata do primeiro crime desse tipo em que atuamos juntos? Todos os anteriores tinham sido, digamos assim, assassinatos privados.

— Tem toda a razão, meu amigo. Até então, nosso destino sempre foi lidar com crimes interiores. A história da vítima era o que importava. E as indagações importantes sempre foram: ‘Qual o beneficiado com a morte de determinada pessoa? Que oportunidades os familiares do morto tiveram para consumar o crime?’ Tratava-se sempre de um crime íntimo. Agora, pela primeira vez desde que nos associamos, estamos lidando com um crime cometido a sangue-frio, impessoal. Crime exteriorizado.”

Fora isso, achei marcantes algumas cáusticas observações de Agatha sobre o processo do envelhecimento, quando Hastings se depara com uma antiga fotografia de um casal de noivos que ele só conheceu muitos e muitos anos depois:

“Evoquei a imagem do velho lúbrico e bêbado, e a fisionomia sofrida e envelhecida da mulher morta, um pouco perturbado diante da impiedosa obra do tempo...”

Por fim, fiquei impressionado com a acurácia psicológica de Agatha nessa obra. Uma fala dela me lembrou muito o que ouvi um professor de psicologia dizer em sua aula:

“Um louco é tão lógico e racional em suas ações como um homem mentalmente são, isso de acordo com seu ponto de vista peculiar e distorcido.”

Encerro com essa deliciosa fala de Poirot:

“Nada é mais perigoso do que uma conversa, para alguém que tem algo a esconder. Como me disse certa vez um velho e sábio francês, a fala é uma invenção do homem para impedi-lo de pensar. E é também um meio infalível de se descobrir o que ele deseja ocultar. Um ser humano, Hastings, não pode resistir, diante da oportunidade que uma conversa lhe dá, de se revelar e expressar sua personalidade. Cada vez ele revelará mais coisas e se deixará trair.”


Compare agora com essa que é uma das mais instigantes citações de Freud:

“Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir convence-se de que os mortais não conseguem guardar segredo. Se os lábios estão mudos, eles tagarelam pela ponta dos dedos. A traição abre seu caminho por todos os poros.” (Sigmund Freud)

Por essas e outras é que não canso de ler e reler Agatha Christie!


   

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FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor de “Favela Gótica” (https://www.verlidelas.com/product-page/favela-g%C3%B3tica), “Diário de um Imago” (https://www.amazon.com.br/dp/B07Z5CBTQ3) e “O Sincronicídio” (https://www.amazon.com.br/Sincronic%C3%ADdio-sexo-morte-revela%C3%A7%C3%B5es-transcendentais-ebook/dp/B09L69CN1J/). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento” (https://youtu.be/bBkdLzya3B4).

 

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