quarta-feira, 18 de maio de 2011
ÁGUA VIVA – Clarice Lispector
Clarice é irresistível! Bruxa sedutora e poderosa!
Cheguei na metade do livro. E já deu vontade de começar a resenha, pois em tão poucas páginas quantas coisas já me fez pensar!
Ao pesquisar na Internet soube que esse livro inicialmente se chamava “Atrás do pensamento: monólogo com a vida”, e que depois foi renomeado como "Objeto Gritante". Soube também que Cazuza leu “Água Viva” 111 vezes!
Fui pesquisar para saber qual veio depois, se esse ou “A Paixão Segundo G. H.” (e foi “Água Viva” mesmo). Pois a impressão maior é que Clarice continuou trilhando o caminho delineado em “G.H.”, ultrapassando as fronteiras que ela mesma havia expandido, audaciosamente indo onde escritor nenhum jamais esteve...
Ou quase. Sinto uma secreta irmandade entre Clarice Lispector, James Joyce, Hermann Broch, Ferreira Gullar e um ou dois dos heterônimos de Fernando Pessoa (o Alberto Caeiro e o Álvaro de Campos). Irmandade sentida, intuída na poderosa lucidez com que usam as palavras para expressar o que não pode ser dito com palavras...
...é de tirar o fôlego!
Livro Abstrato
Por alguns aspectos, achei “A Paixão Segundo G.H.” superior.
O fiapo de história que conduz essa obra é veículo mais que adequado para as reinações de Clarice. É impressionante o suspense que ela obtém com a repetição da frase no fim e no início de cada capítulo!
Em “Água Viva”, porém, nem esse fiapo existe! Clarice se propõe a escrever um livro como se fosse uma pintura totalmente abstrata, sem nenhuma conexão com algum objeto exterior. Essa proposta é explícita já na abertura do livro:
“Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna consciência” – Michel Seuphor
Por essa citação mesma percebe-se que Clarice reconhece de partida que a “pintura abstrata” é, na verdade, impossível, uma meta inatingível. Pois a pintura é sempre figurativa, sempre faz uma referência ao objeto.
Imaginem então a ousadia de Clarice – menina travessa!!! – em escrever um livro que é como um quadro impossível de ser pintado!!!
Paixão Viva
Só por essa audácia o livro já vale a pena. Ocorre que a leitura gera uma certa estranheza no início (eu pelo menos senti), e até mesmo um questionamento da validade de prosseguir a leitura (pois seguindo essa proposta o livro poderia ter só 10 páginas, ou 1.000, e estaria expressando da mesma forma seu objetivo), justamente pela falta desse fiapo condutor.
Acho que Clarice mesma sentiu essa necessidade:
“De vez em quando te darei uma leve história – área melódica e cantábile para quebrar este meu quarteto de cordas: um trecho figurativo para abrir uma clareira na minha nutridora selva.”
O que importa é que, vencida a resistência inicial, Clarice opera a sua magia, abrindo aqui e ali vislumbres do intraduzível, que ela captura não sei por qual magia, não só com palavras, talvez com palavras e silêncios, ritmos, mensagens subliminares...
Não sei como Clarice faz isso. Mas há magia nesse livro!
Pérolas
“Quem for capaz de parar de raciocinar – o que é terrivelmente difícil – que me acompanhe.”
“Depois de certo tempo cada um é responsável pela cara que tem.”
“O que vai ser já é.”
Viva Clarice!!!
(e ainda estou na página 38!!!)
(11.05.11)
A alegria do it
Que sincronicidade Clarice falar tanto de it!
Passei a semana passada pensando sobre isso: não temos em português como expressar o que a palavra it expressa em inglês. Já sabia disso, é claro, mas voltei a pensar no assunto ao ver em um filme a mesma frase que li em um livro do Ed McBain, e dita nas mesmas circunstâncias. Está lá o casal, no bem bom do sexo, e lá pelas tantas a mulher diz para o homem:
“Give it to me! Give it to me!”
Não tem como dizer essa frase em português, com todas as suas possibilidades eróticas e escatológicas. O mais próximo disso fica bem longe, seria o nosso familiar: “Goza, benzinho, goza!”
Por incrível que pareça, dediquei algumas horas e sinapses refletindo sobre esse assunto. Pois perceber algo assim é notar como o nosso pensamento é engaiolado pelas palavras, pelo idioma que falamos, e como é preciso expandir nossa capacidade de pensar para além das palavras.
É claro que tomei como uma prova de que não sou um louco, e sim um sábio por pensar nessas coisas, ao ver a insistência com que Clarice bate nessa tecla do it, e aproximadamente pelos mesmos motivos!
Para entender “Água Viva”
A própria Clarice explica, sem mistério:
“Tente entender o que pinto e o que escrevo agora. Vou explicar: na pintura como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo – e não ver através da memória de ter visto num instante passado. O instante é este. O instante é de uma iminência que me tira o fôlego. O instante é em si mesmo iminente. Ao mesmo tempo que eu o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante.”
Não é o fluxo da consciência o que Clarice persegue (embora sua prosa acabe de certa forma resvalando no fluxo). O que ela busca é o silêncio entre dois pensamentos. Você já parou para pensar nisso? Entre um pensamento e outro, existe uma interrupção, um salto, um solavanco. Perceber isso é se fazer a essencial pergunta: quem será esse “eu” que pensa meus pensamentos? Onde está esse “eu” no intervalo entre dois pensamentos? Refletir sobre isso liberta de muita ilusão.
Esse é o cerne, creio eu, desta obra tão sui generis!
Momento íntimo
Particularmente tocante é o momento em que Clarice torna o leitor/interlocutor em parceiro das agonias e êxtases de seu processo criativo.
Clarice põe-se nua, não uma nudez majestosa de revista Playboy, mas aquela nudez embaraçosa, que revela fraquezas e imperfeições. Ela ter escrito essas confissões com o peito tão aberto não surpreende. Mas sim ter corajosamente deixado esse trecho tão revelador ser editado e impresso, para todo mundo ler. Ninguém pode dizer que essa moça não é corajosa!
Ler esse livro foi uma aventura intelectual única! Experiência que só foi igualada (e, devo dizer, superada) por “A Paixão Segundo G. H.”, que considerei mais perfeito, mas não menos intenso ou autêntico que “Água Viva”.
Vale a pena passar por essa experiência!
Viva Clarice!
(13.05.11)
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Lispector é única! Bela resenha, bjs.
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