De cara o título do livro me fez retornar a visão para ele e quando isso acontece dificilmente deixo de lê-lo: “Narciso: tédio e fúria” carrega tanta força que por si só já vale uma observação mais apurada por parte do leitor. E foi pensando nisso que iniciei a leitura e me tornei cativo.
Logo no início Roque Neto compara Esperantina, uma pequena cidade do Piauí com a Cabul de Hosseini e a Boston de Lehane. Como ficar indiferente diante de tal conexão? É como se deparar com o sertão mineiro de Guimarães Rosa com suas sutilezas e universalidades. Além do mais são autores que tenho em alta conta, para não dizer que sou fã inconteste.
Ainda no início nos faz questionar a respeito do “mito”, ou melhor, de como se dá a passagem do estágio de “bastante conhecido” para o de “mito”, citando o famoso “Lourenço Bandoleiro”, personagem com uma longa ficha policial que inclui, inclusive, homicídios, utilizado pelos mais velhos para amedrontar as crianças:
“Se continuar desse jeito, você vai ficar igualzinho ao Lourenço Bandoleiro”.
Fez-me lembrar de alguns mitos de minha própria infância em Mococa-SP, tais como: Curruila, uma senhora negra como o pássaro que lhe originou o apelido, que corria atrás das crianças quando chamada pelo epíteto; Mané Quiabo, outro que pegava as crianças e as comia (pelo menos era o que os pais nos diziam).
Tudo isso fui rememorando, porém o que me fez regredir foi o enredo, tratado de forma magistral, trazendo à tona imagens de meus tempos de coroinha da igreja Matriz. A raiva do personagem central me atingiu em cheio. Já carreguei dentro de mim uma raiva incontida e ainda hoje trago resquícios dela em algumas de minhas atitudes. Tenho pouco controle, mas consigo disfarçar bem.
“... Ele sorriu e deu tapinhas nas minhas costas. Eu sorria para ele, mas o meu peito mais uma vez estava tomado de raiva... Quando apertei sua mão, olhei em seus olhos e concluí ‘Vou matá-lo!’ ”.
O personagem parece carregar toda a raiva do mundo dentro de si, filho bastardo, nascido na zona rural, sofre todos os dissabores do preconceito e da invisibilidade social. Arvora-se da condição e do direito de ser deus, encontrando justificativa para seus inúmeros crimes, inclusive com trecho das regras de São Bento:
“Este homem foi assim entregue à morte da carne para que seu espírito se salve no dia do Senhor”.
Não sobra pedra sobre pedra – homossexualismo, aborto, morte, não passam desapercebidos em nenhum momento. Com citações de Hermann Hesse e Umberto Eco, o enredo feito de retalhos transforma-se numa colcha bem trabalhada, belíssima. O livro é “forte”, desconcertante, provocativo e assumidamente polêmico, seja por envolver a igreja, seja por nos colocar como juízes. Altamente recomendado!
Adorei sua resenha Rodolfo. Realmente esse livro é muito intenso! E por isso mesmo que eu amei!
ResponderExcluirBeijo
Eliane (Leituras de Eliane)
Homossexualismo é um termo extinto, era um termo patológico que caiu de desuso, pois ser gay não é uma doença. O termo certo é homossexualidade.
ResponderExcluirCara Eliane, obrigado por suas palavras, realmente é um livro que me deixou com uma sensação estranho por vários dias. Quero relê-lo um dia.
ResponderExcluirCaro Tiago, desculpe-me a ignorância. Não trato o homossexualismo ou a homossexualidade como doença, apenas quis frisar que a igreja ainda trata de determinados assuntos como se os mesmos fossem tabu. Agora prometo utilizar o vocábulo da forma correta.