sexta-feira, 20 de abril de 2012

CONTRAPONTO – Aldous Huxley


Sinto que se eu fosse escrever tudo o que esse livro me fez pensar, teria que redigir ao menos um livro do mesmo tamanho, pois seria praticamente um comentário para cada frase. Por isso resolvi adotar a estrutura de tópicos, em uma tentativa de registrar ao menos as percepções mais importantes, sem a necessidade de uma conexão lógica entre um pensamento e outro.

* Primeiro as informações genéricas: Aldous Huxley foi sem dúvida um dos mais importantes autores do século XX. Sua obra mais conhecida é “Admirável Mundo Novo”, uma feroz crítica à sociedade moderna que é sempre comparada com o “1984” de George Orwell. Outros livros marcantes de Huxley são “A Ilha” (meu preferido dele), “O Macaco e a Essência” (narrativa satírica e meio esquisita), “As Portas da Percepção / O Céu e o Inferno” (onde Huxley descreve suas experiências com a mescalina), sem falar em outros que ainda não tive a oportunidade de ler, tais como “Sem Olhos em Gaza” e “Os Demônios de Loudon”.

* Li esse “Contraponto” agora pela segunda vez. A primeira vez que li foi durante a adolescência, lá pelos 17 anos. Ao ler de novo, martelou em minha mente o conselho de Schoppenhauer, para quem não devemos jamais ler um livro sem primeiro pensar cuidadosamente sobre o assunto tratado no livro. Agindo dessa forma, garante o filósofo, evitamos o grande risco de absorver os pensamentos de outra pessoa como sendo nossos, sem que tenhamos a chance de descobrir se concordamos ou não com eles. Como é sábio esse conselho!

“Contraponto”, entre outras obras que li no mesmo período, foi um dos ingredientes para que eu me tornasse ateu na época. Não lembrava mais disso, só lembrei ao reler. Em minha sede intelectual na época, tomei aquele ceticismo irônico e um tanto depressivo como modelo de conduta, como o caminho que deveria trilhar para me tornar eu mesmo um “intelectual”.

De volta ao mesmo livro, depois de quase vinte anos, foi a mim mesmo que reencontrei, com quem pude conversar, conviver e aprender. Que bela oportunidade! Mais uma dádiva e tanto proporcionada pelo hábito da leitura.

Ao mesmo tempo, é claro, foi com Aldous também que conversei, convivi e aprendi. Sinto-me agora mais íntimo e conhecedor da mentalidade desse grande escritor. Tive que tirá-lo um pouco do pedestal onde eu o havia colocado, é verdade, mas isso foi necessário para que eu enxergasse melhor o homem por detrás das ideias. A paixão adolescente foi substituída por um amor mais centrado e maduro.


* É preciso também prestar um tributo à sincronicidade. Resolvi reler “Contraponto” após ter lido “O Senhor Embaixador” de Erico Verissimo, pois acreditei enxergar alguma semelhança na maneira de estruturar a narrativa nos dois romances. E não é que descubro que “Contraponto” foi traduzido para o português por Érico Veríssimo (assim mesmo, com acento). Serão os dois a mesma e única pessoa? Tudo leva a crer que sim, pois a primeira edição nacional saiu pela editora Globo de Porto Alegre.


* “Contraponto” pode ser considerado um romance de ideias. O próprio Huxley faz uma deliciosa descrição desse estilo por intermédio de seu alterego, o cerebral escritor Philip Quarles:

“O romance de ideias. O caráter de cada uma das personagens deve-se achar, tanto quanto possível, indicado nas ideias das quais ela é porta-voz. Na medida em que as teorias são a racionalização de sentimentos, de instintos, de estados de alma, isto é praticável. O defeito capital do romance de ideias é que somos obrigados a por em cena pessoas que tem ideias a exprimir, o que exclui mais ou menos a totalidade da raça humana – à parte apenas 0,01 por cento. Aqui a razão pela qual os romancistas verdadeiros, os romancistas natos não escrevem tais livros. Mas, ora! eu nunca pretendi ser um romancista nato.”

“O grande defeito do romance de ideias é que ele é uma coisa artificial, arranjada. Necessariamente; porque as pessoas capazes de desenvolver teses formuladas de maneira adequada não são bem reais; são levemente monstruosas. Torna-se um tanto cansativo, com o andar do tempo, viver com monstros.”


* Essa ideia de um personagem alterego do escritor foi a chave para desvendar o grande mistério de “Contraponto” nessa segunda leitura. Philip Quarles de imediato sugeria o alterego, por ser um escritor ultra-racional, a ponto de ser despojado das emoções. Aldous Huxley possui uma dessas inteligências espantosas, que combinada com uma erudição verdadeiramente impressionante acaba por dar a impressão de que ele é vagamente inumano. Acho que foi Anthony Burgess, outro grande da literatura inglesa, que certa vez descreveu Huxley como um “deus distraído”.

* Pois bem. A um certo ponto dessa segunda leitura começou a me incomodar a maneira como Huxley descreve um outro personagem, Burlap. O editor de uma revista literária é descrito de forma cínica e impiedosa por Huxley: um hipócrita com pretensões à espiritualidade que não passam de pretextos para exercitar a sua pervertida sensualidade. Burlap é detonado por Huxley com tanta intensidade que chama a atenção. Percebi que era um personagem central para decifrar a trama.

Foi quando percebi que Burlap também é um alterego de Huxley! É justamente por isso que o pobre é fustigado com tanta veemência: é a si mesmo que Huxley chicoteia com tanto gosto. Burlap representa o lado espiritualizado e místico de Huxley, que ele desprezava em si mesmo e queria combater a todo custo.

Esse insight inicial logo trouxe a revelação: todos os personagens de “Contraponto” são alteregos de Huxley!!!

Com habilidade ímpar, o autor deu vida e voz a facetas de sua própria personalidade e colocou-as para interagir, se debater e se chocar umas contra as outras. John Bidlake é o sensualista puro e experimentado, assim como Walter Bidlake é a sua antítese, a versão envergonhada de si mesma. Everard Webbley é o facista escondido em cada um, e Ildidge é a sua contraparte, o revolucionário que também existe em cada um de nós. Spandrell é o cínico por excelência, Rampion é o demasiadamente humano, e por aí vai.

Como não ficar de boca aberta diante da magnitude de tal obra? Um verdadeiro prodígio do intelecto!!!

* Uma vez de posse da “chave do enigma”, no entanto, me propus a desconstruir o mito do grande autor e enxergá-lo o mais humano possível. Era para mim uma questão fundamental de aprendizado, tanto de literatura como de vida.

Aldous Huxley não pôde se furtar a ser um produto de seu tempo. Ele foi uma privilegiada testemunha do advento da sociedade de massas, da indústria cultural e da desenfreada corrida pelo progresso tecnológico, fenômenos que marcam nossas vidas até os dias de hoje. Ele viu lá atrás que a humanidade estava dando perigosos passos, e enxergou muito bem as terríveis consequências desses passos.

O problema é que essa visão o conduziu a um pessimismo cheio de desespero. Acaso permitisse a si mesmo aceitar a realidade de uma dimensão espiritual (essa dimensão foi suprimida a custo de muito esforço: Burlap é prova disso), esse pessimismo não teria sido tão definitivo, certamente não teria a última palavra. Mas se isso acontecesse, Huxley não seria Huxley: teria virado algum tipo de Hermann Hesse.

* Uma evidência dessa peculiar cegueira de Huxley é o uso aparentemente indistinto que ele faz das palavras “espírito” e “mente”, como se fossem a mesma coisa. Seria necessário consultar a obra original para se ter certeza a respeito, mas é essa a impressão que dá a tradução: que para Huxley o espírito é apenas a manifestação mais alta do intelecto. Colocando o intelecto acima de tudo, não é de se admirar que o resultado seja o pessimismo.

(Aliás, de grande valia para mim foi a definição do Iogue Ramacháraca a respeito do pessimismo como uma doença tipicamente mental. Pois nem o corpo nem o espírito conhecem o pessimismo, apenas o intelecto.)


* Outra questão que evoca o texto original está no próprio título. “Point Conter Point” (algo como “Ponto Contra Ponto”) sugere com muito mais vivacidade essa ideia de que os personagens são “pontos” da personalidade do autor deliberadamente colocados em conflito.

* Essa leitura foi inestimável! Dentre muitos outros ganhos, percebo que obtive uma boa chave para encarar a leitura de “Ulisses” de James Joyce, que havia me espantado por estar embebido no mesmo pessimismo cínico. Quem sabe agora eu encaro de vez esse tijolo!


2 comentários:

  1. Comecei a ler agora pela primeira vez. confesso que achei o inicio meio confuso mas estou insistindo. tenho certeza que valerá a pena

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  2. Comecei agora. Já li 'A Ilha' e confesso que amei aquele livro. Aldous é uma grande alma.

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