O melhor da filosofia é filosofar. Ler um livro de filosofia não significa receber passivamente conceitos e ideias formulados por outras pessoas. Essa receptividade passiva e inerte, aliás, não ocorre na leitura de livro algum, pois toda leitura é também um ato criativo. Ler é filosofar, no sentido de que implica sempre em alguma concepção do mundo.
Ler filosofia, então, é filosofar duas vezes. O ganho maior se dá não quando aprendemos o que pensava sobre tal assunto o grande fulano ou beltrano, o que seria um mero decoreba, alimentação vazia, sem nutrientes. A filosofia grita “olé!” dentro da gente quando descobrimos o que nós mesmos pensamos sobre cada assunto, ao sentir ecoando em nosso espírito o que disseram os grandes mestres do passado (ou do presente ou – o que não é raro em filosofia – até do futuro!).
Nesse sentido, esses “Ensaios” de Montaigne são um lauto banquete. Não há assunto sobre o qual Montaigne não fale, sempre com a justificativa de estar falando de si mesmo, o que ele faz com a elegância própria do gênio. O seu texto é uma delícia! É difícil crer que estamos lendo filosofia. Mais parecem crônicas sobre a vida, sobre o mundo, sobre si mesmo (sobretudo sobre si mesmo e, a partir daí, sobre a vida e o mundo).
E mais ainda, eu diria: ler Montaigne foi como visitar uma taverna francesa no século XVI. Pois a sua filosofia é pura conversa de bar, no melhor sentido possível! Alguns filósofos nos dão a impressão de estarmos em algum lugar gelado e sonolento. Montaigne, ao contrário, traz em sua prosa a vivacidade de uma boa conversa entre bons amigos, regada por um bom vinho. Os amigos são muitos e privilegiados, principalmente os autores romanos, os mais citados: Sêneca, Cícero, Virgílio, Horácio, Lucrécio, Plínio, Ovídio e outros tantos. Os gregos também comparecem em peso: Platão, Aristóteles, o mais amado Sócrates e muitos que vieram antes dele (Parmênides, Zenão, Heráclito, Homero, Hesíodo, Tales...). E quanto ao vinho, não poderia ser de melhor safra: a mais doce e inebriante filosofia! Vejam só que festa de arromba nessas quinhentas páginas eu fui parar!
A cada ensaio de Montaigne, é como se participássemos de uma alegre discussão sobre os mais variados assuntos. E o melhor de tudo é que há total liberdade de opinião nos bate-papos. Ninguém precisa concordar com o que está sendo dito. O anfitrião, mais que ninguém dá o exemplo, discordando livremente de tudo e de todos e até, com frequência, de si mesmo. Não é incomum que ele diga aqui que é B o que ele acabou de afirmar que era A. Sempre de forma inteligente, carismática, charmosa. Exatamente como um anfitrião brilhante e levemente embriagado em uma confraternização de bar! Se aqui ou ali o mestre também deixa escapar alguma besteira da grossa, ora, isso também acontece pelos bares da vida...
Montaigne é um cético como poucos. Diverte-se em exercitar a dúvida, mas não a leva além de seu ponto natural, e inclusive ridiculariza com muita graça os exageros nesse sentido. A dádiva maior de sua filosofia é o bom senso.
Um prazer à parte são as pinceladas que Montaigne faz de sua época e costumes, ricamente temperadas com muita ironia. Para nós, brasileiros, tem um sabor especial (sem trocadilhos rarara) a impressão que nossos tataravós causaram em Montaigne durante um encontro ocorrido por volta de 1580, devidamente registrada no trigésimo primeiro ensaio, “Dos Canibais”...
Lendo os “Ensaios” de Montaigne, vamos gradualmente percebendo o tamanho de sua influência em nossa cultura. Esses ensaios foram muito lidos e muito citados por muita gente durante os mais de quatrocentos anos de sua publicação. Devido à obsessão de Montaigne em citar os autores antigos, os ensaios trazem um valioso panorama do pensamento durante a antiguidade clássica, além de seu próprio e privilegiado ponto de vista.
Valeu demais a leitura!
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