quarta-feira, 25 de abril de 2012

MONTAIGNE Volume 2 – Coleção Os Pensadores



Decidi fazer a resenha desse livro aos poucos, à medida que vou lendo. Acho que será uma inovação divertida e que me ajudará a ler o livro de forma mais proveitosa!

Os “Ensaios” de Montaigne, pelo que entendi, fazem um total de três livros. O volume 1 da coleção Os Pensadores trouxe o primeiro livro e a metade do segundo. Esse volume 2 traz a outra metade do segundo e o terceiro livro. Em cada livro, os ensaios são divididos em capítulos numerados. Esse volume 2 já começa no capítulo 14.

Capítulo XIV – COMO O NOSSO ESPÍRITO CRIA SUAS PRÓPRIAS DIFICULDADES

Ensaio curtíssimo, de pouco mais de uma página. O título diz o principal.

Capítulo XV – NOSSO DESEJO CRESCE COM A DIFICULDADE

Esse já foi um bom exemplar da filosofia de Montaigne. É recheada de citações de autores latinos, tais como:

“A tristeza de ter perdido algo e o receio de perdê-lo, são uma só e mesma coisa” (Sêneca).

Traz também anedotas e episódios da vida dos antigos:

“O grande Catão (como nos ocorre também) cansou da mulher quando sua e tornou a desejá-la ao casar-se ela com outro.”

Mas tem também as excelentes tiradas de Montaigne, que na verdade constituem sua filosofia, ou seja, as conclusões espirituosas a que ele chega a partir da leitura dos sábios antigos e da observação dos costumes de então comparados com os de seu tempo:

“A seriedade de nossas amantes aborrece-nos, mas em verdade a facilidade com que porventura se entreguem ainda aborrece mais.”

“Ocorre com a beleza o mesmo que com a virtude: dois caminhos conduzem a ela, um fácil, outro semeado de obstáculos e nem sempre atingindo o seu objetivo. É entretanto o último que mais apreciamos, que achamos mais belo e digno.”

“Defender sugere o ataque: a desconfiança provoca a ofensa.”

E finalmente, para que esse seja um bom exemplo da prosa de Montaigne, não falta ainda um de seus ingredientes principais e mais saborosos, que é a maneira como o filósofo muda de assunto sem a menor cerimônia, de acordo com as inspirações que lhe batem no espírito. E é assim que o ensaio começa falando sobre o desejo sexual e termina com um discurso sobre a desnecessidade de um fidalgo fortificar a sua mansão!



Capítulo XVI – DA GLÓRIA

Aqui Montaigne disserta sobre a insensatez de basear a vida na busca de fama e de glória, pois nada é tão inconstante quanto a opinião das massas, e nada é tão passageiro quanto a “imortalidade” humana.

Curiosamente, a maior parte do ensaio destina-se a criticar aqueles que agem de forma virtuosa apenas com o fim de serem louvados por seus semelhantes:

“Seria a virtude coisa vã e frívola, se à glória pedisse recompensa”.

“Preocupo-me bem menos com o que posso ser aos olhos de outrem do que com o que sou a meus próprios olhos; quero ser rico por mim mesmo e não mediante empréstimos.”

Imagino o que Montaigne diria se pudesse contemplar a nossa sociedade, onde a fama virou um bem em si mesma e dificilmente está associada à virtude...

Capítulo XVII – DA PRESUNÇÃO

Nesse longo ensaio encontramos um pouco de tudo. Montaigne fala até mesmo da presunção:

“A presunção exerce-se de duas maneiras: em nos superestimando e em subestimando os outros.”

Para justificar que não é um presunçoso da primeira maneira (superestimando a si mesmo), Montaigne passa a desfiar uma longa lista de seus próprios defeitos e imperfeições. Fiquei feliz ao me identificar com ele em vários desses defeitos, como por exemplo o da péssima caligrafia:

“Sou tão desajeitado de mão que mal posso reler o que escrevo, a ponto de preferir escrever de novo a decifrar minhas garatujas.”

Muitas vezes, porém, Montaigne finge que vai dizer uma coisa e acaba dizendo o contrário. É esse o caso quando ele astutamente coloca na lista dos “defeitos” algumas inegáveis qualidades, com as quais fiquei mais feliz ainda ao me identificar:

“Se não encontro prazer na tarefa, se outra coisa que não minha simples e livre vontade me obriga a trabalhar, já não valho mais nada.”  - Considero isso uma qualidade porque acredito que jamais deveríamos fazer algo de má vontade. Por isso, ou eu faço de boa vontade ou não faço!

“Por temperamento fujo da mentira; o simples pensamento da mentira é-me odioso; sinto vergonha em mim mesmo e um pesado remorso se por vezes me ocorre mentir, quando surpreso e obrigado a responder sem refletir. Não há como dizer sempre tudo; seria tolice; mas o que se diz deve ser o que se pensa.” – Aqui Montaigne exercita livremente sua ironia, pois considera um defeito não saber mentir em uma época em que a mentira é valorizada.

A ironia, aliás, sempre está presente no melhor de Montaigne:

“Há males que vem para o bem: é vantajoso nascer neste século de depravação, porque passamos por virtuosos com bem pouco; quem não é, em nossos dias, parricida ou sacrílego é homem de bem.”

“Ensinamos as mulheres a corar ao ouvirem o que em absoluto não receiam fazer; não ousamos chamar a nosso sexo pelo nome certo, mas não tememos empregá-lo na devassidão.”

“O avarento vive pior do que o pobre por causa de sua paixão: e o ciumento pior que o enganado; e não raro há menor prejuízo em perder o vinhedo do que lhe disputar a posse nos tribunais.”

“Acredito no meu bom senso. E quem não acredita no seu?”


Das frases dos autores romanos antigos, essa foi a que mais gostei:

“Ninguém acredita mais em si do que um mau poeta.” (Marcial)

Uma coisa interessante é que aqui e ali aparece em  Montaigne um pensamento de sensibilidade especial, que se destaca da sucessão de frases de efeito que compõem seu estilo. Essa é uma delas:

“Não existe alma, por mais pobre e grosseira que seja, em quem não se desenvolva alguma faculdade especial.”



Capítulo XVIII – DO DESMENTIDO

Montaigne critica a sociedade de seu tempo, mas poderia estar falando de nosso mundo atual:

“O primeiro sintoma de corrupção dos costumes está no desamor à verdade.”

“Entre nós, hoje em dia, a verdade não é o que é, mas o que consegue persuadir os outros.”

Embora o tema do ensaio seja a crítica social, a denúncia da hipocrisia reinante, esse conflito que aqui aparece é na verdade essencial à filosofia. Poderíamos definir esse confronto básico assim:

Existe uma verdade X Existem concepções da verdade

Teríamos Sócrates como campeão da primeira assertiva, e como representante da segunda bem poderia estar Protágoras de Abdera, grande sofista que assim definiu o mundo: “O homem é a medida de todas as coisas.”

Sócrates acredita em uma Verdade acima dos homens. Protágoras defende que toda verdade é uma verdade humana, uma interpretação humana.

E você, de que lado fica nessa batalha filosófica???

Capítulo XIX – DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA

“É frequente vermos as boas intenções, quando mal orientadas, provocarem os piores resultados.”

A primeira foi também a melhor frase do ensaio.



Capítulo XX – NADA APRECIAMOS INTEIRAMENTE PURO

Esse valeu pela citação de “um antigo versículo grego, cujo sentido é: ‘vendem-nos os deuses todos os bens que nos dão.’”

E também por esse inspirador pensamento sobre a indecisão:

“Quem procura e pondera todas as circunstâncias de uma questão, não a leva a cabo; um espírito de mediana capacidade basta para resolvê-la, e tudo pode realizar muito bem, tanto as coisas grandes como as pequenas.”

Capítulo XXI – DA INDOLÊNCIA

De vez em quando Montaigne dá uma de Maquiavel e fica falando sobre sucessos e fracassos de guerra, histórias de batalha, como exemplos de alguma hipótese. Talvez seja um tipo de discurso comum na época, mas como o próprio Montaigne citou Maquiavel de uma forma meio despeitosa (será que essa palavra existe? Mistura de despeito com desrespeito) em um desses ensaios, concluo que estava mesmo imitando o estilo italiano maquiavélico. Mas em matéria de maquiavelismo, ninguém pode se comparar a Maquiavel, ora pois!

Valeu por essa frase:

“A atitude mais corajosa diante da morte, e a mais natural, está em a esperar, não somente sem espanto como também sem preocupação; está em continuar a viver, até que ela se apodere de nós”.



Capítulo XXII – DOS CORREIOS

Praticamente uma crônica moderna, esse breve ensaio. Montaigne fala sobre os tipos de correios: mais rápido através dos postos de troca de cavalo, criativo ao pintar andorinhas com cores diferentes e soltá-las de acordo com a mensagem, tradicional no uso dos pombos em Roma.

O indiscutível toque da crônica se dá quando Montaigne traz essas informações para sua vivência pessoal e reclama da dor e do cansaço de cavalgar.

Será que Montaigne é o pai da crônica?



Capítulo XXIII – DOS MEIOS E DOS FINS

Esse ensaio está em sintonia com Inácio de Loyola, o fundador da ordem dos Jesuítas e autor da frase: “os fins justificam os meios”.

Montaigne acaba dizendo quase a mesma coisa, talvez de uma forma mais sensível: “a fraqueza de nossa condição impele-nos não raro a empregar meios condenáveis para alcançar um resultado conveniente”.

Gostei principalmente dessa prece de Catulo:

“Ó poderosa Nêmesis, faze que não deseje nada a ponto de o tentar obter em detrimento de seu legítimo dono.”


Capítulo XXIV – DA GRANDEZA DE ROMA

Mais uma crônica de Montaigne, sobre como sua época não se comparava à glória de Roma.



Capítulo XXV – DA INCONVENIÊNCIA DE FINGIR DE DOENTE

...porque pode acabar ficando doente mesmo.


Capítulo XXVI – DOS POLEGARES

“Na Lacedemônia os professores puniam os alunos mordendo-lhes o polegar.”

Credo!!!


Capítulo XXVII – A COVARDIA É MÃE DA CRUELDADE

Pelo que diz Montaigne, essa frase era bem comum em sua época: “A covardia é mãe da crueldade”.

Eu não a conhecia, e achei interessante a associação. Lembrei de meu ano no Exército, pois servi no CPOR e me chamou muito a atenção que os alunos mais preguiçosos, indisciplinados e “bisonhos”, depois que se tornaram aspirantes, foram justamente os mais cruéis, que mais perseguiam os soldados... ou seja, uns covardes!


Capítulo XXVIII – CADA COISA A SEU TEMPO

Deu um ataque de conservadorismo em Montaigne e ele resolveu criticar as pessoas de mais idade que se dedicam a aprender algo. Para com isso, Montaigne! Nunca é tarde para se aprender nada! Quem não tem mais o que aprender, está desperdiçando oxigênio...

Parece que Montaigne tem alguns grilos com a idade. Ele chegou a dizer que um homem que nada fez de significativo até os 30 anos provavelmente nunca chegará a fazê-lo. O detalhe é que ele começou a escrever seus Ensaios, pelos quais foi imortalizado, aos 35 anos...


Capítulo XXIX – DA VIRTUDE

Coletânea de diversos episódios da vida dos antigos e também de contemporâneos de Montaigne. Essa história de longe foi a mais bizarra:

“Há cerca de sete ou oito anos, um aldeão, que ainda vive, cansado das cenas de ciúme que lhe fazia a mulher, foi acolhido ao voltar do trabalho pela saraivada habitual de recriminações. Louco de raiva, com a foice que trazia à mão, decepou as partes do corpo que tanto agitavam sua mulher e jogou-lhas à cara.”


Capítulo XXX – A PROPÓSITO DE UMA CRIANÇA MONSTRUOSA

Montaigne descreve dois irmãos xipófagos, e finaliza com sensibilidade:

“Os que denominamos monstros não o são perante Deus, pois só Deus distingue e aprecia, na imensidade de Suas obras, as formas infinitas que imaginou.”


Capítulo XXXI – DA CÓLERA

“A cólera é paixão que em si mesma se compraz e a si mesma aplaude. Quantas vezes, tendo agido sob o impulso de um erro nós nos irritamos contra a verdade e inocência comprovadas?”

Montaigne começa denunciando o perigoso hábito dos pais de castigar os filhos no momento da raiva, quando geralmente se faz mais mal que bem.

Depois ele dá uma espetada nas mulheres:

“Quem já se houve com mulheres obstinadas sabe da raiva que as invade se opomos à sua irritação o silêncio e a indiferença. (...) Assim são as mulheres. Irritam-se apenas para ter uma oportunidade de irritas os outros, imitando nisso as leis do amor.”

Podem chamar de machismo, mas que tem um pingo de verdade aí...


Capítulo XXXII – DEFESA DE SÊNECA E PLUTARCO

...contra alguns que falaram mal dos dois autores prediletos de Montaigne.

Gostei dessa percepção:

“Se apresentam a alguém algo que outro fez ou imaginou, para o julgar, toma-se a si próprio como referência; o que nele se verifica é que deve servir de regra. Que perigosa e insuportável tolice!”

Realmente, é bem mais sábio tentar sempre se colocar no lugar do outro, e não achar o outro estranho porque ele não encaixa em nosso lugar...


Capítulo XXXIII – HISTÓRIA DE ESPURINA

Esse é um recurso bem usado por Montaigne: a tal história de Espurina só é contada no final do ensaio, que é principalmente um retrato das maiores qualidades do imperador romano Júlio César e também de seu principal defeito (segundo Montaigne), a ambição desmedida.

Quanto a Espurina, foi um jovem tão belo que despertava a volúpia de todos que o viam. Para fugir ao assédio, desfigurou seu rosto com uma faca...

Gostei desse pensamento:

“É talvez mais fácil abster-se de maneira absoluta de quaisquer contatos com o sexo feminino do que se conduzir sempre de modo perfeito com sua mulher. (...) O uso comandado pela razão é mais penoso que a abstinência.”

Capítulo XXXIV – OBSERVAÇÕES ACERCA DOS MEIOS QUE JÚLIO CÉSAR PUNHA EM PRÁTICA NA GUERRA

Montaigne empolga em sua paixão por César:

“Tais homens tem uma confiança como que sobrenatural em sua sorte, e eis porque [César], referindo-se a esses empreendimentos ousados, dizia que convinha executá-los sem indagar se deviam ou não ser tentados.”


Capítulo XXXV – TRÊS BOAS MULHERES

Montaigne estava com raiva de alguém, de alguma viúva que em sua visão ofendeu o defunto marido, daí resolveu desancar a hipocrisia das viúvas em geral! As três boas mulheres são exemplos da antiguidade de esposas que souberam acompanhar os homens na morte...

Gostei muito dessa conclusão:

“Eis minhas três histórias, todas verdadeiras, e tão trágicas e interessantes quanto as que inventamos para distrair o público. E espanta-me que os que se dedicam a isso, não as colham na realidade em vez de as inventar. Pois assim teriam menos trabalho e tirariam delas maior proveito. Quem com elas quisesse escrever uma obra, teria apenas que as ligar umas às outras, como com a solda se unem dois fragmentos de metais diferentes.”

(29.07.09)


Capítulo XXXVI – DOS HOMENS PREEMINENTES

Depois de falar das três boas mulheres, a sequência natural é louvar três grandes homens.

O primeiro é Homero. Fiquei feliz por Montaigne colocar Homero acima de todos. Durante muito tempo considerei a Odisseia simplesmente a maior história de todos os tempos. Essas palavras de Montaigne traduzem admiravelmente esse sentimento causado por Homero:

“É contrário à natureza das coisas, ter ele [Homero] produzido a melhor das obras criadas pelo espírito humano, pois em geral tudo é imperfeito em sua origem e só se fortalece e amplia na medida em que se desenvolve. Com ele entretanto a poesia e as ciências já surgem perfeitas. Por isso mesmo podemos considerá-lo o primeiro e o último poeta, porque, segundo o belo testemunho da antiguidade, não imitou ninguém nem ninguém o pôde imitar.”

Só recentemente tive acesso ao épico indiano Mahabharata, bem mais antigo e inacreditavelmente ainda mais colossal que a Odisseia e a Ilíada juntas! Mas na época de Montaigne o Mahabharata ainda não era conhecido no Ocidente...

“O segundo desses homens superiores é Alexandre, o Grande. (...) Que coisa grandiosa ter percorrido, com trinta e três anos, todo o mundo conhecido em seu tempo, e alcançado em uma metade de vida normal o máximo a que aspira um homem!”

Foi só a custo que Montaigne não deu a coroa a Júlio César ao invés de Alexandre. “Mas, ainda que a ambição de César tenha sido mais moderada, causou tanta infelicidade a seu país e ao mundo que, bem pesados ambos, não posso deixar de manifestar-me a favor de Alexandre.”

“O terceiro e, a meu ver, o melhor de todos, é Epaminondas. (...) Os gregos honraram-no com o título de ‘maior dos gregos’ e ser o maior na Grécia correspondia a ser o maior no mundo.”

E eu nunca nem tinha ouvido falar desse Epaminondas!

Capítulo XXXVII – DA SEMELHANÇA DOS FILHOS COM OS PAIS

Montaigne sofre com ataques de cólica nefrítica (cálculos renais) e chega a pensar na morte:

“(...) dizendo para mim mesmo que chegara a hora de partir; que é preciso interromper a existência, cortando-a no vivo e na parte ainda sã”.

“Essas cólicas comportam ao menos a vantagem de me familiarizar enfim com a ideia da morte, pois quanto mais me atormentam e importunam menos me sinto preso à vida.”

“Que não me censurem os males que nesta hora me ferem; já vivi quarenta e sete anos com excelente saúde, parece-me suficiente. E se minha vida findasse agora, ainda seria das mais longas.”

Isso acaba levando Montaigne a um longo discurso contra a incompetência dos médicos de seu tempo, o que ele faz de forma inteligente e muitas vezes engraçada:

“Um mau lutador fizera-se médico: ‘coragem’, disse-lhe Diógenes, ‘tens razão; vais agora poder derrubar todos os que te derrubaram outrora’. Como observa Nícocles, ‘tem eles [os médicos] a sorte de o sol iluminar-lhes os êxitos e a terra esconder-lhes os erros’.”

O que não impede que o próprio Montaigne se arrisque a elaborar algumas hipóteses sobre doença e saúde, o que faz com muita sensibilidade:

“Julgo que os banhos são salutares e que muitas afecções provêm do fato de termos perdido o hábito de lavar diariamente o corpo, como se fazia em quase todas as nações do passado e ainda se continua a fazer em algumas. Não posso compreender que hava alguma vantagem em conservar os poros obstruídos pela sujeira.”

O que mostra que o filósofo, assim como o poeta, é aquele que enxerga o óbvio!

Mas o mal que a filosofia se propõe a curar é mesmo a ignorância:

“Toda ideia preconcebida é destituída de razão e portanto má. É doença que cumpre combater.”

E filosofia, como Montaigne a entende, nunca será um conhecimento vazio, é necessário incorporá-lo à prática:

“É para nós mesmos e não para os outros que nos educa a filosofia; para que sejamos e não para que pareçamos ser.”

O tema que dá título ao ensaio aparece quase de passagem:

“Prodigioso é com efeito que o sêmen prolífico engendra e traz a marca não somente da constituição física de nossos pais, mas ainda de seus pensamentos e tendências. (...) Quem me explicar a causa pode estar certo de que aceitarei também as explicações que porventura me venha a dar acerca de outros milagres, conquanto não se valha de alguma teoria mais fantástica ainda do que o próprio fato, o que se verifica não raro.”

Fiquei pensando o que Montaigne acharia de uma explicação a respeito do DNA... o que me lembrou algo que li há algum tempo, a afirmação de que uma criança de 10 anos, em nossos dias, possui muito mais conhecimentos sobre o mundo que Aristóteles! Vivemos em uma época privilegiada, repleta de oportunidades de crescimento para a espécie humana.

Com esse ensaio termina o livro II. Esse pensamento me trouxe alguma tristeza: depois que eu tiver lido o livro III, não haverá mais Montaigne para ler!!! L

LIVRO III

Capítulo I – DO ÚTIL E DO HONESTO

Montaigne inicia o livro III bem a seu gosto, entre questões éticas e abundantes exemplos do passado clássico.

Como em vários momentos anteriores, Montaigne revela ser um psicólogo sutil, um profundo conhecedor da natureza humana:

“Nosso ser é um aglomerado de qualidades que são ao mesmo tempo defeitos.”

“Mesmo a crueldade, esse vício antinatural, habita em nós, pois paralelamente à compaixão experimentamos uma volúpia agridoce, e doentia, ao espetáculo do sofrimento alheio.”

“Quem extirpasse o germe dos maus sentimentos do coração do homem destruiria nele as condições essenciais à vida.”

Surpresa foi ver Montaigne falando sobre a “malandragem”!

“Mas seria desconhecer a realidade não dar à malandragem o mérito que lhe cabe, sei que não raro presta serviços e é necessária em mais de uma ocasião. Há defeitos lícitos como há boas ações ilícitas.”

Como o Brasil havia acabado de ser descoberto, ainda não estava em voga o jeitinho brasileiro...


Capítulo II – DO ARREPENDIMENTO


“Outros autores tem como objetivo a educação do homem; eu o descrevo.”

Aqui Montaigne volta ao tema central de sua filosofia:

“A vida íntima do homem do povo é de resto um assunto filosófico e moral tão interessante quanto à do indivíduo mais brilhante; deparamos em qualquer homem com o Homem.”


O que ele faz sempre com carisma e bom humor:

“Eu e meu livro estamos bem aparelhados. Em outros casos, pode-se apreciar a obra e não gostar do autor; no meu caso, não.”


Essa frase me fez refletir:

“Os vícios de outrora tornaram-se os costumes de hoje.” (Sêneca)

Pois a frase é de um autor da Roma clássica, e foi citada por Montaigne como se aplicando a sua própria época, mas nada impediria que alguém a usasse para descrever nosso próprio tempo. Isso significa que de Roma para cá só fizemos decair??? Ou será que tudo é uma questão de perspectiva??? Será que tudo é mesmo relativo???

Ética é uma parte da filosofia que se dedica a descobrir qual é a melhor vida possível, um saber que ensine a bem viver. Hoje a palavra ética está no senso comum mais associada a um código de conduta, a regras de bom comportamento na vida profissional e na sociedade como um todo. Se pensarmos que a Ética, em sua origem, é a busca da felicidade, fica mais fácil compreender que o mundo seria um paraíso se todos agissem com ética...

A Ética de Montaigne é bastante profunda, pois não se limita às aparências:

“Todos podem fazer-se comediantes e representar o papel de um personagem honesto. Mas dentro de nós, onde somos senhores, onde tudo permanece secreto, é difícil não nos afastarmos da regra. E ser ponderado em assunto que não suporta a interferência alheia, é aproximar-se da perfeição.”

“As tendências naturais desenvolvem-se e se fortalecem pela educação, mas não se modificam. Tenho visto milhares de indivíduos voltarem-se para a virtude ou o vício, apesar de uma educação que os deveria impelir para o lado oposto.”

Falando sobre o arrependimento, Montaigne demonstra conhecer bem os intricados mecanismos da culpa:

“O que verdadeiramente nos condena, e afeta a maneira de ser de todos, é que o próprio arrependimento se acha corrompido pelas más intenções. Temos apenas confusamente o desejo de nos corrigir, iludimos a penitência e nos conduzimos então pior ainda do que no pecado.”

Capítulo III – DA COMPANHIA DOS HOMENS, DAS MULHERES E DOS LIVROS

Montaigne reflete sobre as três coisas que lhe dão mais prazer: conversar com os homens, amar as mulheres e ler os livros (não necessariamente nessa ordem...).

Para que esses prazeres não se misturem, ele critica a moda das mulheres em seu tempo quererem se instruir e debater filosofia (por mais que tenha visão e sensibilidade, Montaigne é também um homem de seu tempo).

A melhor parte do ensaio é mesmo quando ele fala sobre sexo e se sai com algumas boas tiradas:

“Mas a atitude dos homens de nossa época faz, como o demonstram os fatos, que as mulheres se unam para nos escapar ou, imitando-nos, representem igualmente e se prestem à comédia das relações íntimas sem paixão nem ternura.”

Montaigne é contra o sexo pelo sexo, desprovido de alguma aspiração mais sublime:

“Os que fizeram uma deusa de Vênus, levaram principalmente em apreço a sua beleza imaterial e espiritual; ora, o prazer que buscam os trapaceiros é unicamente sexual. Não é o que o homem deveria ambicionar, nem mesmo o do animal.”

Por isso mesmo é que “O comércio dos livros é mais seguro”:

“Para afastar uma ideia importuna, nada como recorrer aos livros; apossam-se de mim e fazem-me esquecê-la.”

Me identifiquei com essas duas frases avulsas:

“Não há como nos apiedarmos do doente que tem a cura a seu alcance.”

“Acho mais suportável estar sempre só do que não poder estar nunca.”


Capítulo IV – DA DIVERSÃO

A diversão de que trata Montaigne é todo assunto que nos desvie de algum tema, como por exemplo o fato inevitável da morte. Nesse ensaio ele dá boas mostras de sua profunda psicologia:

“Quando uma ideia penosa me invade, mudo o curso de meu pensamento em vez de tentar suplantá-la. Substituo-lhe uma ideia contrária se possível ou pelo menos diferente.”

Jung resumiria bem essa sábia estratégia ao dizer que não adianta tentar NÃO pensar no elefante branco: “Tudo a que se resiste, persiste.”

Dá-lhe Montaigne!

Capítulo V – A PROPÓSITO DE VIRGÍLIO

Não se deixe enganar pelo título. Nesse longo ensaio, um dos mais divertidos até aqui, Montaigne usa a filosofia para explicar porque o sexo é assunto popular.

Mas até que o ensaio começa bem sério, apesar do ótimo conselho:

“Mistura à sabedoria um grão de loucura”. (Horácio)

Gostei bastante dessas afirmações de Montaigne:

“O pior de meus atos, a pior das situações em que me encontre não me parecem tão feios que não possam ser confessados, pois mais feio e covarde é não ousar dizê-lo. Todos se mostram discretos na confissão, mas na verdade deveriam tê-lo sido na ação: a ousadia no erro é em parte compensada pela ousadia na confissão. Quem se obrigasse a tudo dizer, obrigar-se-ia a nada fazer que não pudesse ser dito.”

Que demonstram a sabedoria de nosso Orkut, que diz praticamente a mesma coisa ao nos brindar com a sorte diária: “Se você não quer que ninguém saiba, não faça.”

Essa frase clássica também expressa belamente a mesma ideia:

“Por que ninguém confessa seus vícios? Porque continuamos escravos deles. É preciso estar acordado para contar um sonho.” (Sêneca)

Finalmente Montaigne entra no assunto sexo, e para valer! Inicialmente, parece que o seu discurso vai ser bem conservador, quando ele propõe que as esposas não sejam amadas com uma paixão muito ardorosa, pois isso desperta a lascívia e é contrário à finalidade maior do casamento, que é a procriação.

Em seguida ele diz:

“Um bom casamento, se é que existe, recusa-se ao amor; deve antes visar a uma boa amizade.”

Mas logo Montaigne engata em uma veia mais divertida, e imagino o impacto que suas frases não causaram entre as “senhoras de sociedade” no seu tempo:

“Tem razão as mulheres quando se recusam a acatar as regras de conduta estabelecidas pela sociedade, tanto mais quanto foram feitas pelos homens que as não ouviram a respeito.”

“Quando as mulheres abrandam um pouco sua atitude cerimoniosa e concordam em falar com toda a liberdade, percebemos que não passamos de crianças ignorantes ao seu lado.”

“Todo o movimento do mundo tem essa conjunção dos sexos como objetivo; ela se encontra em toda parte; é o centro para o qual tudo converge.”

“Digamos a verdade: não há entre nós quem não receie mais a vergonha provinda das faltas de sua mulher do que a decorrente de seus próprios erros.”

“Nada nos seduz mais do que uma mulher que se mantém honesta sem deixar de ser carinhosa e amável.”

“Neste século é preciso mais temeridade do que tenho, essa temeridade que os jovens atribuem ao entusiasmo da idade, mas que, se a olharmos de perto, não passa, na realidade, de desprezo pela virtude das mulheres que assediam.”

“E bom psicólogo foi quem disse que, para um casamento feliz, é necessário unir um homem surdo a uma mulher cega.”

“Os povos e religiões coincidem em certas coisas: oferendas, sacrifícios, luminárias, incensos, jejuns e condenação do ato sexual. (...) E talvez tenhamos mesmo razão em condenar o ato que engendra coisa tão estúpida quanto o homem, e em tachar de indecentes as partes que dele participam.”

“Mil motivos, fora da vontade, podem levar uma mulher a entregar-se; a coisa não é, em si, uma prova de afeição.”

“Ademais, exigindo o papel ativo maiores esforços do que o passivo, a mulher está sempre em estado de desempenhar o seu, ao passo que pode ocorrer-nos o contrário.”

A conclusão, a favor da igualdade sexual, antecipa o feminismo em 400 anos:

“para acabar, portanto, com este comentário, direi que machos e fêmeas saem de um mesmo molde e que, salvo pela educação e os costumes, em bem pouca coisa diferem.”

Mas Montaigne atinge o auge da sinceridade mesmo ao confessar que é pouco dotado sexualmente:

“Lamentável imperfeição, pois cada uma de minhas peças é igualmente minha e nenhuma mais do que essa me torna mais essencialmente homem.”

Admirável sinceridade! Um homem capaz de falar a verdade a esse respeito deve mentir muito, mas muito raramente!

Claro está que ele já se considera velho e fora do jogo do sexo:

“Em outras palavras, após inúmeros contratempos libertei-me dessa paixão perigosa e posso falar abertamente.”

“Compreendo porém muito bem que o amor não se recupera; por fraqueza e experiência nosso gosto se faz mais exigente e requintado; e tanto mais queremos selecionar quanto menos possibilidades temos de ser aceitos.”

Não seria um texto de Montaigne se ele não fugisse do tema um pouco (mesmo que o tema já fosse uma fuga de outro tema!), e daí saiu essa bela frase sobre a arte de escrever:

“Quando vejo essa maneira ousada, tão viva e profunda de se exprimir, não considero o que escrevem ‘bem escrito’, mas sim ‘bem pensado’.”

Penso exatamente assim! Platão mesmo já dizia: “quem concebe bem, escreve bem”.

E também essas outras pérolas saíram de um desvio do tema principal:

“os que pretendem opor a gramática ao costume são ridículos”. – também concordo totalmente, pois penso que a língua é viva, pertence ao povo que a fala, e não aos eruditos e gramáticos que se arvoram em seus senhores.

“Se olho atentamente para alguém, algo dessa pessoa se imprime em mim; aposso-me do que analiso” – aqui mais uma vez Montaigne dá mostras de uma rara compreensão da psique humana.

Há também umas boas anedotas:

“Houve na Catalunha um processo célebre em que a mulher se queixava da frequência com que seu marido a solicitava (...), que mesmo nos dias de jejum não podia deixar de possuí-la dez vezes.” Por decisão da rainha, a esposa ficou obrigada a um máximo de seis relações por dia!

Outra anedota bizarra refere-se ao castigo dado pelos atenienses ao que eram pegos cometendo adultério: eram “empalados” com nabos e cenouras!!! Imagine se a moda volta nos dias de hoje: iria faltar legumes na feira...

Capítulo VI – DOS COCHES

INACREDITÁVEL!!!

Nesse ensaio Montaigne faz referência a algo que só pode ser a tal Profecia Maia, de acordo com a qual o mundo irá chegar ao fim de um grande ciclo em 21 de dezembro de 2012:

“Os mexicanos eram algo mais civilizados e artistas do que os outros povos do Novo Mundo. Acreditavam, como já o acreditamos também, que o mundo está por acabar; e a desolação a que levaram seu país pareceu-lhes um sinal precursor. Pensavam que a existência do mundo comportasse cinco fases, cada uma delas correspondente à vida de um sol. Quatro já teriam terminado e estaríamos vivendo a quinta fase. (...) O autor dessas informações ignora o que os mexicanos pensam acerca da maneira por que se extinguiria o nosso sol, mas estaríamos às vésperas de uma conjunção de astros semelhante à que provocou, há cerca de oitocentos anos, o fim da quarta fase, anterior à nossa.”

Não sei o que me deixa mais estupefato. Se é o fato de Montaigne ter tido acesso a essas informações, tão pouco tempo após a descoberta do Novo Mundo. Ou se é a onipresente lei da sincronicidade, que veio colocar um assunto que tanto me interessa onde eu menos esperava!


Capítulo VII – DOIS INCONVENIENTES DAS GRANDEZAS

Mais algumas boas frases de Montaigne:

“Não aprecio em verdade o poder, nem para exercê-lo nem para suportá-lo.”

“O ofício mais difícil deste mundo é sem dúvida o de rei.”

E também esse interessante conceito:

“Homero viu-se forçado a consentir em que Vênus, tão delicada e suave, fosse ferida em Tróia, a fim de outorgar-lhe coragem e ousadia, qualidades que não se agregam a quem não corre perigo. Se se admite que os deuses sejam sujeitos a cóleras, paixões, temores, ciúmes, sofrimentos, é para poder atribuir-lhes as virtudes opostas. Quem não corre risco, nem enfrenta dificuldades, não pode pretender honrarias nem se beneficiar com o prazer das vitórias.”

Capítulo VIII – DA ARTE DE CONVERSAR

Sempre há as belas frases de Montaigne, que nos fazem pensar:

“Começamos por hostilizar os argumentos e acabamos inimigos dos homens.”
– Grande verdade! Por isso não gosto muito de debater minhas opiniões. É uma armadilha muito difícil de se vencer: nos primeiros cinco minutos, queremos honestamente trocar ideias. A partir daí, tudo o que importa é vencer o adversário! Prefiro agir como os Titãs: cada um que fique com o seu bom gosto!

“E não é porque são sábios que são menos tolos.”
– Outra grande verdade que merece ser lembrada, pois temos a tendência de confundir erudição e cultura com inteligência. Uma das pessoas mais estúpidas que conheci possuía doutorado pela Sorbonne!

“Não há maior tolice, nem mais absurda, do que impressionar-nos e irritar-nos com as tolices alheias.”
– Se formos cuidar de nossas próprias tolices, já teremos assunto para a vida inteira!

“Nada me irrita mais, porém, na estupidez, do que a satisfação com que se exibe, maior do que poderia ter, com certa razão, a inteligência. (...) A obstinação e a convicção exagerada são a prova mais evidente da estupidez.”
– Dá-lhe, Montaigne! Como sempre se revelando um excelente psicólogo e conhecedor da natureza humana.

Capítulo IX – DA VAIDADE

“Não haverá talvez maior vaidade que escrever sobre esta e tão inutilmente.”

Assim começa Montaigne o seu longo ensaio, mostrando que está preparado para lançar chumbo grosso, ainda que contra si mesmo:

“Deveria haver leis que punissem os escritores ineptos e inúteis, como existem para os vagabundos e malandros. Assim se arrancariam das mãos do povo minhas obras e muitas outras.”

Como sempre as citações dos clássicos romanos são abundantes. Gostei mais dessas:

“Não se deve avaliar a fortuna pela renda, mas pelas necessidades.” (Cícero)

“Suportaria estes tempos piores do que a idade do ferro, em que faltam nomes para os crimes e que a natureza não pode designar por nenhum novo metal.” (Juvenal)

“Nada existe, mesmo útil, que seja útil a quem passa correndo.” (Sêneca)

De modo geral Montaigne está meio rabugento nesse ensaio, o que nubla um pouco o seu brilho habitual. Mas aqui e ali encontramos pérolas:

“Vil e tola atividade, essa que consiste em lidar permanentemente com o dinheiro, contando-o e pesando-o!”

“Seja por artifício, ou por impulso natural, o fato de viver a compararmo-nos com os outros causa-nos mais prejuízos do que benefícios.”

“Dizem que a vida não é melhor por ser longa mas que a melhor morte é a mais curta.”

“Observam alguns jardineiros que as rosas e as violetas nascem com mais perfume se plantadas ao lado da cebola e do alho porque estes atraem e absorvem os maus odores da terra.”

“Não porque o disse Sócrates, mas porque em verdade o penso, todos os homens são meus compatriotas; e sou mesmo levado a exagerar este sentimento.”

“E água mole em pedra dura tanto bate até que fura, pois, como dizia Lucrécio, a água fura o rochedo.”

Essa frase me deixou com a impressão de que foi Montaigne o autor desse famoso ditado. Será? Essa outra frase de Montaigne também remete aos ditos populares:

“O que balança em geral não cai.”

Aqui um belo exemplo da ironia de Montaigne:

“Os ladrões não me odeiam particularmente, nem eu a eles, porque teria que odiar exagerado número de pessoas.”

Há também uma declaração de amor a Paris:

“só me sinto francês por causa dessa grande cidade (...) É a glória de França e um dos mais nobres ornamentos do mundo.”

Vira e mexe, Montaigne volta ao tema central da vaidade, chegando ao ponto de considerar a própria filosofia uma vaidade:

“Toda essa sabedoria, todos esses preceitos que serão senão vaidade?”

No “gran finale”, Montaigne compensa totalmente a rabugice inicial. Aqui ele alia a sua poderosa capacidade de observação, sua fina psicologia e sua não menos apurada ironia:

“Se os outros se analisassem tão atentamente como o faço, achar-se-iam igualmente vaidosos e frívolos. Não posso livrar-me desses defeitos sem me destruir. Todos valemos tão pouco uns como outros, mas o que o não percebem parece-me que saem ganhando, embora não esteja muito certo disso.”

Capítulo X – DO DOMÍNIO DA PRÓPRIA VONTADE

“Os cidadãos de Bordéus elegeram-me prefeito da cidade”.

A eleição “a pulso” e a falta de entusiasmo em seu cargo de prefeito são os motivos principais para Montaigne falar um pouco sobre tudo:

“Nunca dirigimos com eficiência uma coisa que nos domina e obceca”.

“Quem se apressa se atrasa.” (Quinto Cúrcio)

“Observe-se que mesmo nas ocupações mais frívolas, como no jogo de xadrez ou da bola, o desejo imoderado de ganhar perturba o espírito e o corpo, ofusca a inteligência e paralisa os movimentos. Quem encara com sensatez a vitória e a derrota, permanece senhor de si.”

“A pobreza de bens é facilmente remediável; a da alma não tem cura.”

“Se o homem se contentasse com o suficiente, eu seria rico; mas como o homem não se contenta, não há riqueza bastante para mim.” (Lucílio)

“Sócrates, ao ver carregarem pelas ruas da cidade móveis e jóias de grande riqueza, disse: quantas coisas que eu não desejo!”

“desconfio um pouco das coisas que ambiciono.”

“É mais fácil não começar do que parar.” (Sêneca)

Uma curiosa surpresa é quando Montaigne comenta sobre o episódio dos “dez dias roubados”:

“Essa inovação que suprimiu dez dias do ano ocorreu agora no fim de minha vida, num  momento em que não posso acomodar-me a essa ideia.”

Em 1582 o papa Gregório XIII reformulou o calendário, suprimindo de 5 a 14 de outubro. Como havia a ideia de que os dias de cada um eram contados, houve uma rebelião popular, pois todos se sentiram lesados pela perda de dez dias de vida!!!


O encerramento é muito bom:

“Tanto aprecio ser feliz como ser sábio e quero dever meu êxito antes às mercês de Deus do que à minha atividade.”

Montaigne não é bobo não!!!

Capítulo XI – DOS COXOS

Montaigne começa reclamando novamente da reforma do calendário promovida pelo Papa Gregório XIII:

“Faz dois ou três anos que foi o ano diminuído de dez dias, em França.”

O tema do ensaio varia entre milagres, crendices e boatos:

“os homens têm tendência para espalhar rumores falsos” (Cícero)

“Com o hábito e o tempo, familiarizamo-nos com tudo o que é estranho; apesar disso, quanto mais me analiso e conheço, tanto mais minha deformidade me espanta e menos eu me compreendo.”

“Muitos abusos se engendram no mundo (talvez todos) do fato de nos ensinarem a não manifestarmos nossa ignorância e a aceitarmos o que não podemos refutar.”

“Se tivesse tido de educar crianças, eu as houvera habituado às dúvidas e não às afirmações. Diriam: ‘Como? Não sei, pode ser, será?’ Assim mais pareceriam aprendizes aos sessenta anos do que doutores aos dez, como acontece hoje. Quem deseja curar-se de sua ignorância precisa confessá-la.”

“As feiticeiras de minha terra correm risco de morte desde que alguém afirme que os sonhos delas se realizaram.”

“Mandar queimar vivo um homem apoiado em simples conjeturas é valorizá-las exageradamente.”

O objetivo de Montaigne parece ser o de criticar a Inquisição, coisa que não se poderia fazer muito abertamente na época em que os desafetos eram enviados para a fogueira! Daí recorrer à ironia e à sutileza:

“Quem, para provar o que sustenta, se revela arrogante, mostra que a razão não é seu forte.”

O título do ensaio é justificado de forma surpreendente:

“diz-se na Itália que não conheceu o amor no que tem de mais doce, quem não dormiu com uma coxa.”

A explicação dos filósofos antigos para os coxos serem “bons de cama” é ainda mais curiosa:

“Afirmam que as pernas não se alimentando como deveriam, em consequência da enfermidade, nutrem-se melhor as partes genitais, desenvolvem-se mais e tornam-se mais vigorosas.”

Que coisa!

Capítulo XII – DA FISIONOMIA

Esse é o penúltimo ensaio de Montaigne que tenho para resenhar! Sei que depois que terminar a leitura sentirei saudades, mas no momento estou ansioso por terminar a leitura, que já se estende por alguns meses.

Nesses últimos ensaios Montaigne anda bastante rabugento, o que contribui em minha pressa para acabar a leitura. Ainda assim, sempre há frases memoráveis:

“Quase todas as nossas opiniões nos são impostas por autoridade alheia.”

“Se encararmos com calma a ciência, veremos que é um bem que, como os demais bens do homem, comporta muita vaidade e fraqueza natural.”

“Não é preciso saber muito para ser sábio.” (Sêneca)

“Nada mais falaz do que uma religião que justifica crimes com o interesse dos deuses.” (Tito Lívio)

Interessante é a referência que Montaigne faz a suas periódicas crises de depressão:

“sou de quando em quando sujeito a depressões melancólicas, que me dominam enquanto não me armo para rechaçá-las.”

Até que ponto essas crises fazem parte da natureza humana? Ou será que só as pessoas “sensíveis” padecem desse mal?

Outra curiosidade é a referência à peste, que Montaigne vivenciou de perto:

“a peste grassou na região com uma violência nunca vista.”

Depois Montaigne se entrega à questão maior da filosofia, que é a do ser diante da morte. Dessa vez ele está disposto a adotar uma atitude contrária à normalmente defendida pela filosofia e a negar o valor de se preparar para a morte:

“Se não sabeis morrer, não vos atormenteis; a natureza ensinar-vos-á no momento preciso de um modo suficiente.”

“Se não soubemos viver, não adianta aprendermos a morrer, e se o soubemos com calma e serenidade, também saberemos morrer do mesmo modo.”

O ponto alto do ensaio é uma longa citação à defesa de Sócrates, uma das mais belas passagens da filosofia. Acusado de corromper a juventude com suas ideias, Sócrates faz a sua defesa de forma bem original: ao invés de pedir clemência ou alegar inocência, ele diz que o que merece mesmo é ser sustentado pela cidade, como o são os heróis de guerra. Não é à toa que Sócrates é tão admirado!!!

Montaigne não deixa de expressar seus temores com a aproximação da velhice em máximas pouco auspiciosas:

“o espírito amesquinha-se e embota-se ao envelhecer.”

Sorte a nossa que tantos anciões de brilho provaram por A mais B que nessa Montaigne errou feio! Caso ele estivesse certo, a experiência humana seria algo muito triste e sombrio.

Gostei desses pensamentos:

“confio facilmente na sorte e a ela me entrego, do que tive até hoje antes razões para me louvar do que para me arrepender, tendo-a constatado mais avisada e amiga de meus interesses do que eu próprio. (...) Creio que nos malogramos não confiando suficientemente no céu e pretendendo que se deva mais a nosso esforço do que se deve na realidade.”

Capítulo XIII – DA EXPERIÊNCIA

No último de seus ensaios, Montaigne faz um passeio por alguns de seus temas prediletos. É claro que ele acaba falando até mesmo do tema principal do ensaio:

“quando a razão não basta apelamos para a experiência.”

“Escutemos nossa experiência, e veremos que nos diz tudo aquilo de que temos necessidade especial.”

“Quem se lembra do papel feio que fez quando tomado de cólera e a que excessos essa febre o impeliu, já sabe a que ponto uma tal paixão é lamentável e não precisa que lho diga Aristóteles.”

“Ensinou-me ainda a experiência que nós nos perdemos por falta de paciência.”


Um tema muito caro a Montaigne é a análise de si mesmo, objetivo maior de sua filosofia:

“A atenção de que há muito aplico em analisar-me, habilita-me a julgar com algum discernimento os outros.”


Ele também gosta muito de falar mal da medicina e do direito. Contra os médicos, dessa vez não encontrei nenhuma frase marcante, mas há várias contra as leis e os juízes:

“A natureza cria sempre leis melhores do que as nossas.”

“Por que nossa linguagem comum, tão cômoda e fácil, se torna obscura e ininteligível quando empregada em contratos e testamentos?”

“Quantas condenações mais criminosas do que o crime não tive a oportunidade de ver!”

“A autoridade das leis não está no fato de serem justas e sim no de serem leis. Nisso reside o mistério de seu poder; não têm outra base, e essa lhes basta.”

“Nada há tão grave, ampla e comumente defeituoso quanto as leis; quem as obedece porque são justas, labora em erro, pois é a única coisa que em verdade não são.”


Ele fala bastante também sobre a dicotomia corpo x alma:

“Aristipo cuidava do corpo, como se não tivéssemos alma; Zenão só considerava a alma, como se não tivéssemos corpo. Ambos erraram.”


Mas o melhor de Montaigne são suas tiradas sobre todo tipo de assunto:

“Não morres porque estás doente e sim porque estás vivo; a morte não precisa da doença para matar.”

“Nunca duas pessoas julgaram uma mesma coisa da mesma maneira e é impossível observarem-se duas opiniões idênticas, não só de indivíduos diferentes mas ainda de um mesmo homem em dois momentos distintos.”

“Quem teme sofrer, sofre mais do que receia.”

“Dormir foi e continua sendo a grande ocupação de minha vida.”

“A mais admirável obra-prima do homem consiste em viver com acerto.”

“é com o traseiro que nos sentamos no mais alto trono do mundo.”



Vira e mexe Montaigne vem também com algum assunto inusitado. Dessa vez foi o hábito de fazer cocô:

“Reis e filósofos precisam diariamente esvaziar os intestinos; e também as mais belas damas.”

Em seguida Montaigne faz considerações sobre a melhor hora do dia para esse hábito muito importante para o bom funcionamento do corpo...


Outro assunto inusitado foi a relação entre dieta e sonhos:

“Os historiadores afirmam que os atlantes não sonhavam nem comiam carne; associo essas coisas porque na segunda está possivelmente a causa da primeira. Não recomendava Pitágoras uma alimentação especial a quem quisesse ter sonhos de acordo com seus desejos?”

Achei curioso o tradutor aguardar até o último ensaio para fazer esse desabafo:

Nota do tradutor: “O pensamento de Montaigne carece por vezes de ligação lógica e há que apelar para certas associações de ideias para entendê-lo.”


Não podem faltar as citações em um texto de Montaigne:

“Procurai, vós que o desejo de aprofundar os mistérios da natureza atormenta.” (Lucano)

“Defiendame Dios de mi” (ditado espanhol)

“É um grande passo para a liberdade saber disciplinar o estômago.” (Sêneca)

E é com esta bela súplica que Montaigne encerra seus Ensaios:

“Peço-te, filho de Latona, que me deixes gozar o fruto de meus trabalhos, dando-me uma saúde constante e perfeita, livrando-me da senectude, surda aos doces cantos das Musas.” (Horácio)


Mui estimado Senhor de Montaigne,

Agradeço de coração as boas horas que passei em companhia de vossa bela prosa. Sinto-me enriquecido por tê-lo conhecido e a vossos distintos pensamentos, a tal ponto que é como se os tivesse recebido de vossos próprios lábios, em ocasiões de boa mesa e melhor conversa, e não de um livro cujo autor já se encontra morto há vários séculos. Não sei se eu seria bem vindo ao Castelo de Montaigne, sendo um reles plebeu baiano, e Vossa Senhoria um mui distinto fidalgo, mas é certo que me senti muito bem acolhido à mansão de vossa filosofia, a tal ponto que doravante me considerarei dela um hóspede permanente.

Com votos da mais elevada estima e apreço,

Fabio Shiva





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