“Meu
reino por um cavalo!”
(Ricardo,
Ato V, Cena IV)
Esta
frase célebre, fora de seu contexto, não revela o brilho e a força do gênio
criativo de Shakespeare. Pois nessa única frase está sintetizado o mais
poderoso estudo sobre a ambição humana que já tive a oportunidade de conhecer.
Altíssimo
brilho, catarse sublime! A tragédia é um estilo fora de moda em nossos tempos,
substituída que foi pelos terrores diários dos jornais televisivos. Mas as
chacinas, corrupções e catástrofes com que somos bombardeados pela mídia são um
pobre substituto para as obras inspiradas por Melpômene, a musa da Tragédia.
Pois não há aprendizado e nem crescimento em testemunhar um sofrimento sem
sentido.
“Ricardo
III” é a segunda melhor tragédia de Shakespeare. Só perde para “Macbeth”, em
minha opinião. As duas têm muito em comum, e principalmente uma característica
que considero a mais alta expressão literária. Eu já havia detectado essa
característica em algumas poucas e muito queridas obras, de cabeça agora lembro
de “Sobre Meninos e Lobos” do Dennis Lehane. Mas foi só agora, ao ler pela
segunda vez “Ricardo III”, que pude definir melhor que característica é essa.
No
entender de Hermann Broch (autor de “Os Inocentes”), toda obra de arte deve
expressar uma totalidade. Isso é admiravelmente alcançado em um romance (ou
peça teatral) quando o autor consegue ligar efetivamente cada ato a sua
consequência, cada ação ao seu resultado. Uma história esteticamente perfeita,
percebo agora, é a que retrata bem o misterioso e inescapável conceito de
“karma” (palavra em sânscrito que significa “ação”).
“Ricardo
III” é um poderoso exemplo dessa totalidade. Que obra!!!
O LADO NEGRO DA FORÇA
A peça
é repleta de passagens de grande lirismo, com a alta poesia sendo utilizada
para retratar o lado mais sombrio do homem.
O
cinismo de Ricardo, por exemplo, é expresso lindamente nessa fala que ele
dirige a seu irmão mais velho:
“Tenho-te
tal amor que dentro em pouco
mandarei
para o céu tua alma cândida,
se
aceitar destas mãos o céu a oferta.”
(Ricardo,
Ato I, Cena I)
Ou
então nessa passagem em que ele arquiteta casar-se com a mulher do homem que
acabou de matar:
“Logo
tomo
por
mulher a mais nova filha de Warwick.
Que
importa que ao seu pai e a seu marido
tivesse
eu dado a morte? O melhor meio
de dar
satisfações a essa donzela
é ficar
sendo dela pai e esposo,
o que
farei, não por amor, decerto,
mas por
um fim profundamente oculto
que preciso
alcançar com o casamento.”
(Ricardo,
Ato I, Cena I)
A cena
em que Ricardo faz a corte a Ana é sem dúvida uma das mais marcantes da
história da literatura. Ele a conquista durante o funeral do Rei Henrique VI,
assassinado por ele:
“Já
houve, acaso, mulher, em todo o mundo,
que
fosse cortejada desse modo?”
(Ricardo,
Ato I, Cena II)
A FORÇA DAS PALAVRAS
“Ricardo
III” é também um testemunho sobre a força das palavras. É impressionante como o
Bardo conseguiu tecer uma trama tão intrincada, onde o destino de cada
personagem é antecipado por toda sorte de profecias e maldições. Exemplar é o
caso do Duque de Buckingham, que foi ele mesmo o autor das palavras que o
condenaram:
“O Deus
do alto,
que
tudo vê, com quem eu gracejara,
fez
contra mim voltar a falsa prece,
dando-me
de verdade o que eu pedira
somente
por gracejo.”
(Buckingham,
Ato V, Cena I)
O
próprio Ricardo demonstra em suas palavras a progressão e amargo fim de toda
ambição. Ele começa cheio de gás e disposto a fazer todo tipo de maldade:
“Sol admirável,
brilha
até que eu adquira um bom espelho
para eu
ver com que monstro eu me assemelho.”
(Ricardo,
Ato I, Cena II)
Logo,
porém, ele percebe que se torna um escravo de suas próprias ações infames:
“Mas
tão metido em sangue ora me encontro,
que um crime
provoca outro.”
(Ricardo,
Ato IV, Cena II)
A LEI DO KARMA
Nenhuma
ação humana, boa ou má, permanece sem consequência. Essa é, em essência, a lei
do Karma. “O plantio é opcional, mas a colheita é obrigatória”, já diz o sábio
ditado.
E as
pérfidas ações de Ricardo maturam tetricamente e não tardam a produzir
horrendos frutos. Cena poderosíssima é a aparição dos fantasmas dos
assassinados pela ambição de Ricardo, na madrugada que antecede a batalha. Cada
um deles, por sua vez, lança a pesada maldição:
“Amanhã
pesarei sobre tua alma!
(...)
Enche-te, pois, de desespero, e morre!”
(vários
espectros, Ato V, Cena III)
Ricardo
desperta assustado, e pela primeira vez tem um encontro com a voz da
consciência:
“Ó
consciência covarde, tu me assustas!”
(Ricardo,
Ato V, Cena III)
E chega
por fim à triste conclusão:
“Desespero;
criatura alguma me ama.
Se eu
morrer, nenhuma alma há de chorar-me.
Aliás,
por que o fariam, se eu não tenho
piedade
de mim próprio?”
(Ricardo,
Ato V, Cena III)
OUTRAS PASSAGENS MARCANTES:
“Perdida
fora a mágoa
despendida
por quem já está perdido.”
(Duquesa
de York, Ato II, Cena II)
“É meu
filho, de fato, e o meu opróbrio;
mas não
bebeu, decerto, a hipocrisia
no
leite destes peitos.”
(Duquesa
de York, Ato II, Cena II)
“Não
cedais facilmente aos nossos rogos;
neste
ponto fazei como as donzelas
que
dizem sempre não, mas vão cedendo.”
(Buckingham,
Ato II, Cena VII)
“Ricardo
apenas vive, o negro agente
do
inferno, a quem foi dado o triste encargo
de
comprar almas para o reino escuro.”
(Rainha
Margarida, Ato IV, Cena IV)
“Veloz
como a andorinha é a fé, eu o sei:
de reis
faz deuses, de um campônio, um rei.”
(Richmond, Ato V, Cena II)
LAST BUT NOT LEAST
Foi uma
sorte que justamente essa peça, que eu já havia lido no original, tenha sido a
última das oito que li em sequência, na dedicada tradução de Carlos Alberto
Nunes.
Pois
não tem jeito mesmo: traduzir é trair. Que misteriosa é a linguagem humana,
capaz de expressar uma cor única em cada idioma! Nunca fica a mesma cor depois
de traduzida. Não é culpa da tradução, e sim uma condição inerente à linguagem!
Ao ler
no original em inglês, duas passagens ficaram marcadas a ferro e fogo na
memória, tamanha a sua força poética. E ao ler as duas em português, a decepção
foi gigantesca!
A
primeira é a frase que abre a peça:
“Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York”
Made glorious summer by this sun of York”
Que foi traduzida assim:
“Ora
pelo sol de York o frio inverno
do
descontentamento foi mudado
em
glorioso verão.”
(Ricardo,
Ato I, Cena I)
Vixe!!!
O que era um soco do Muhammad Ali virou um tapinha do Tiririca!!!
Pior
ainda foi a segunda frase, que me marcou tanto que a citei nos dois discos que
gravei com a banda Imago Mortis:
“I'll
join with black despair against my soul,
And to myself become an enemy.”
Ficou
tão fraquinha em português:
“Lanço
contra minha alma o desespero,
para
inimiga tornar-me de mim própria.”
(Rainha
Elizabeth, Ato II, Cena II)
A
vontade que sinto agora é ler todas as peças de novo, só que em inglês!
Ainda
assim, a força de Shakespeare dá e sobra para encantar, mesmo com esses abismos
de tradução.
Viva
Shakespeare! O Rei eterno da literatura!!!
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