terça-feira, 11 de setembro de 2012

A TRAGÉDIA DO REI RICARDO III – William Shakespeare




  
“Meu reino por um cavalo!”
(Ricardo, Ato V, Cena IV)

Esta frase célebre, fora de seu contexto, não revela o brilho e a força do gênio criativo de Shakespeare. Pois nessa única frase está sintetizado o mais poderoso estudo sobre a ambição humana que já tive a oportunidade de conhecer.

Altíssimo brilho, catarse sublime! A tragédia é um estilo fora de moda em nossos tempos, substituída que foi pelos terrores diários dos jornais televisivos. Mas as chacinas, corrupções e catástrofes com que somos bombardeados pela mídia são um pobre substituto para as obras inspiradas por Melpômene, a musa da Tragédia. Pois não há aprendizado e nem crescimento em testemunhar um sofrimento sem sentido.

“Ricardo III” é a segunda melhor tragédia de Shakespeare. Só perde para “Macbeth”, em minha opinião. As duas têm muito em comum, e principalmente uma característica que considero a mais alta expressão literária. Eu já havia detectado essa característica em algumas poucas e muito queridas obras, de cabeça agora lembro de “Sobre Meninos e Lobos” do Dennis Lehane. Mas foi só agora, ao ler pela segunda vez “Ricardo III”, que pude definir melhor que característica é essa.

No entender de Hermann Broch (autor de “Os Inocentes”), toda obra de arte deve expressar uma totalidade. Isso é admiravelmente alcançado em um romance (ou peça teatral) quando o autor consegue ligar efetivamente cada ato a sua consequência, cada ação ao seu resultado. Uma história esteticamente perfeita, percebo agora, é a que retrata bem o misterioso e inescapável conceito de “karma” (palavra em sânscrito que significa “ação”).

“Ricardo III” é um poderoso exemplo dessa totalidade. Que obra!!!


O LADO NEGRO DA FORÇA

A peça é repleta de passagens de grande lirismo, com a alta poesia sendo utilizada para retratar o lado mais sombrio do homem.

O cinismo de Ricardo, por exemplo, é expresso lindamente nessa fala que ele dirige a seu irmão mais velho:

“Tenho-te tal amor que dentro em pouco
mandarei para o céu tua alma cândida,
se aceitar destas mãos o céu a oferta.”
(Ricardo, Ato I, Cena I)

Ou então nessa passagem em que ele arquiteta casar-se com a mulher do homem que acabou de matar:

“Logo tomo
por mulher a mais nova filha de Warwick.
Que importa que ao seu pai e a seu marido
tivesse eu dado a morte? O melhor meio
de dar satisfações a essa donzela
é ficar sendo dela pai e esposo,
o que farei, não por amor, decerto,
mas por um fim profundamente oculto
que preciso alcançar com o casamento.”
(Ricardo, Ato I, Cena I)

A cena em que Ricardo faz a corte a Ana é sem dúvida uma das mais marcantes da história da literatura. Ele a conquista durante o funeral do Rei Henrique VI, assassinado por ele:

“Já houve, acaso, mulher, em todo o mundo,
que fosse cortejada desse modo?”
(Ricardo, Ato I, Cena II)


A FORÇA DAS PALAVRAS

“Ricardo III” é também um testemunho sobre a força das palavras. É impressionante como o Bardo conseguiu tecer uma trama tão intrincada, onde o destino de cada personagem é antecipado por toda sorte de profecias e maldições. Exemplar é o caso do Duque de Buckingham, que foi ele mesmo o autor das palavras que o condenaram:

“O Deus do alto,
que tudo vê, com quem eu gracejara,
fez contra mim voltar a falsa prece,
dando-me de verdade o que eu pedira
somente por gracejo.”
(Buckingham, Ato V, Cena I)

O próprio Ricardo demonstra em suas palavras a progressão e amargo fim de toda ambição. Ele começa cheio de gás e disposto a fazer todo tipo de maldade:

“Sol admirável,
brilha até que eu adquira um bom espelho
para eu ver com que monstro eu me assemelho.”
(Ricardo, Ato I, Cena II)

Logo, porém, ele percebe que se torna um escravo de suas próprias ações infames:

“Mas tão metido em sangue ora me encontro,
que um crime provoca outro.”
(Ricardo, Ato IV, Cena II)

A LEI DO KARMA

Nenhuma ação humana, boa ou má, permanece sem consequência. Essa é, em essência, a lei do Karma. “O plantio é opcional, mas a colheita é obrigatória”, já diz o sábio ditado.

E as pérfidas ações de Ricardo maturam tetricamente e não tardam a produzir horrendos frutos. Cena poderosíssima é a aparição dos fantasmas dos assassinados pela ambição de Ricardo, na madrugada que antecede a batalha. Cada um deles, por sua vez, lança a pesada maldição:

“Amanhã pesarei sobre tua alma!
(...) Enche-te, pois, de desespero, e morre!”
(vários espectros, Ato V, Cena III)

Ricardo desperta assustado, e pela primeira vez tem um encontro com a voz da consciência:

“Ó consciência covarde, tu me assustas!”
(Ricardo, Ato V, Cena III)

E chega por fim à triste conclusão:

“Desespero; criatura alguma me ama.
Se eu morrer, nenhuma alma há de chorar-me.
Aliás, por que o fariam, se eu não tenho
piedade de mim próprio?”
(Ricardo, Ato V, Cena III)


OUTRAS PASSAGENS MARCANTES:

“Perdida fora a mágoa
despendida por quem já está perdido.”
(Duquesa de York, Ato II, Cena II)

“É meu filho, de fato, e o meu opróbrio;
mas não bebeu, decerto, a hipocrisia
no leite destes peitos.”
(Duquesa de York, Ato II, Cena II)

“Não cedais facilmente aos nossos rogos;
neste ponto fazei como as donzelas
que dizem sempre não, mas vão cedendo.”
(Buckingham, Ato II, Cena VII)

“Ricardo apenas vive, o negro agente
do inferno, a quem foi dado o triste encargo
de comprar almas para o reino escuro.”
(Rainha Margarida, Ato IV, Cena IV)

“Veloz como a andorinha é a fé, eu o sei:
de reis faz deuses, de um campônio, um rei.”
(Richmond, Ato V, Cena II)

LAST BUT NOT LEAST

Foi uma sorte que justamente essa peça, que eu já havia lido no original, tenha sido a última das oito que li em sequência, na dedicada tradução de Carlos Alberto Nunes.

Pois não tem jeito mesmo: traduzir é trair. Que misteriosa é a linguagem humana, capaz de expressar uma cor única em cada idioma! Nunca fica a mesma cor depois de traduzida. Não é culpa da tradução, e sim uma condição inerente à linguagem!

Ao ler no original em inglês, duas passagens ficaram marcadas a ferro e fogo na memória, tamanha a sua força poética. E ao ler as duas em português, a decepção foi gigantesca!

A primeira é a frase que abre a peça:

“Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York”

Que foi traduzida assim:

“Ora pelo sol de York o frio inverno
do descontentamento foi mudado
em glorioso verão.”
(Ricardo, Ato I, Cena I)

Vixe!!! O que era um soco do Muhammad Ali virou um tapinha do Tiririca!!!

Pior ainda foi a segunda frase, que me marcou tanto que a citei nos dois discos que gravei com a banda Imago Mortis:

“I'll join with black despair against my soul,
And to myself become an enemy.”

Ficou tão fraquinha em português:

“Lanço contra minha alma o desespero,
para inimiga tornar-me de mim própria.”
(Rainha Elizabeth, Ato II, Cena II)

A vontade que sinto agora é ler todas as peças de novo, só que em inglês!

Ainda assim, a força de Shakespeare dá e sobra para encantar, mesmo com esses abismos de tradução.

Viva Shakespeare! O Rei eterno da literatura!!!

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