A
terceira parte de “Henrique VI” tem ao menos uma coisa em comum com a terceira
parte da saga cinematográfica de “Guerra nas Estrelas”: as duas histórias
contam o surgimento de um dos maiores vilões da humanidade. George Lucas criou
Darth Vader, o supremo arquivilão mítico. E o gênio de Shakespeare concebeu um
vilão muito mais humano, e por isso muito mais assustador: Ricardo de York,
depois chamado Duque de Gloucester e finalmente infame como o rei Ricardo III.
Ricardo
é mesmo a sinistra estrela da peça. Rouba todas as cenas, não tem para ninguém.
Aliás, ler essa peça me fez pensar que as histórias mais interessantes são as
que trazem os melhores vilões. Isso vale para Shakespeare e também para a
novela das oito.
E
Ricardo é mesmo um dos maiores vilões de Shakespeare (o que equivale a dizer que
é um dos caras mais malvados da literatura mundial). Eu o coloco em meu “Top
Five” dos “Bad Guys” shakespeareanos:
1) Iago
2)
Macbeth
3)
Ricardo III
4) Rei
Claudio
5)
Cardeal Wolsey
Na
verdade, como está acima demonstrado, para mim Ricardo ganha a medalha de
bronze dos maiores facínoras da literatura!!!
Para
começar, a aparência física do personagem foi um verdadeiro achado. Ao
contrário do Ricardo histórico, que até parecia boa pinta (a julgar por um
retrato dele), o Ricardo de Shakespeare é profundamente deformado fisicamente:
“De
medo que eu ficasse
sob o
seu regimento delicado,
peitou
a natureza criminosa
para
que me deixasse o braço seco
como
galho sem seiva, e uma montanha
invejosa
no dorso me pusesse,
de onde
a deformidade zomba à grande
do meu
corpo, estas pernas me deixasse
desiguais,
afastando-me de toda
proporção,
como ainda informe filho
de
urso, que à mãe em nada se parece.”
(Ricardo,
Ato III, Cena II)
Essa
deformidade física será brilhantemente utilizada como alegoria para a deformação
moral do personagem:
“Já que
me fez o céu assim disforme,
torça-me
o inferno o espírito também.”
(Ricardo,
Ato V, Cena VI)
E é
assim que o próprio Ricardo justifica sua ambição desmedida e assassina:
“Ora,
se a terra só me proporciona
a
alegria do mando, do domínio,
de
subjugar pessoas bem formadas,
seja o
meu céu sonhar com a coroa.
Enquanto
eu tiver vida, puro inferno
vai ser
o mundo, a menos que a cabeça
firmada,
assim, neste disforme corpo,
me
circunde coroa gloriosa.”
(Ricardo,
Ato III, Cena II)
Em
resumo: Ricardo é mau, muito mau:
“Eu,
que não tenho
piedade
e desconheço o amor e o medo.”
(Ricardo,
Ato V, Cena VI)
Mas não
é um vilão bidimensional, incapaz de sentimentos mais puros. Seu lado mais
bondoso aparece quando ele perde o irmão caçula (que portanto não representava
um rival na disputa pela coroa):
“Eu,
que nunca chorei, agora em lágrimas
me
desfaço, por ver que, prematuro,
me
corta o inverno as flores do futuro.”
(Ricardo,
Ato II, Cena IV)
Já o
irmão mais velho é alvo de sua inveja e malícia:
“Eduardo
trata honrosamente todas
as
mulheres. Pudesse ele esgotado
vir a
ficar, medula, ossos e tudo,
para
que de seus rins ramo auspicioso
não
nascesse, capaz de separar-me
da
idade de ouro com que sempre eu sonho!”
(Ricardo,
Ato III, Cena II)
A peça
possui muitas outras passagens marcantes, de grande lirismo. Eis algumas:
“Deus
clemente,
abre-me
as largas portas de tua graça!
Escapa-se
por estes ferimentos
minha
alma, a procurar-te.”
(York, Ato I, Cena IV)
“Não é
certo que o espinheiro
fornece
sombra muito mais amena
ao
pastor que contempla as inocentes
ovelhas,
do que o fazem recamados
dosséis
aos reis que de seus próprios súditos
a toda
hora se temem?”
(Rei
Henrique, Ato II, Cena V)
“Dor
sobre dor, tristeza mais que humana!
Se eu
pudesse, morrendo, por um término
a todas
essas cenas de crueldade!”
(Rei
Henrique, Ato II, Cena V)
“Por que viver, para inundar o mundo
com
palavras?”
(Ricardo,
Ato V, Cena V)
A fala
final é repleta de ironia, de tal modo como só havia visto em Nelson Rodrigues!
Pois fica claro para o espectador que as maldades de Ricardo estão só
começando... e então a sua próxima vítima declara:
“Adeus,
tristeza! Adeus, melancolia!
Vai
durar muito tempo esta alegria.”
(Rei
Eduardo, Ato V, Cena VII)
E
agora, enfim, vou ler de novo “Ricardo III”!
Viva
Shakespeare!
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