terça-feira, 11 de setembro de 2012

HENRIQUE VI (3ª parte) – William Shakespeare




A terceira parte de “Henrique VI” tem ao menos uma coisa em comum com a terceira parte da saga cinematográfica de “Guerra nas Estrelas”: as duas histórias contam o surgimento de um dos maiores vilões da humanidade. George Lucas criou Darth Vader, o supremo arquivilão mítico. E o gênio de Shakespeare concebeu um vilão muito mais humano, e por isso muito mais assustador: Ricardo de York, depois chamado Duque de Gloucester e finalmente infame como o rei Ricardo III.

Ricardo é mesmo a sinistra estrela da peça. Rouba todas as cenas, não tem para ninguém. Aliás, ler essa peça me fez pensar que as histórias mais interessantes são as que trazem os melhores vilões. Isso vale para Shakespeare e também para a novela das oito.

E Ricardo é mesmo um dos maiores vilões de Shakespeare (o que equivale a dizer que é um dos caras mais malvados da literatura mundial). Eu o coloco em meu “Top Five” dos “Bad Guys” shakespeareanos:

1) Iago
2) Macbeth
3) Ricardo III
4) Rei Claudio
5) Cardeal Wolsey

Na verdade, como está acima demonstrado, para mim Ricardo ganha a medalha de bronze dos maiores facínoras da literatura!!!



Para começar, a aparência física do personagem foi um verdadeiro achado. Ao contrário do Ricardo histórico, que até parecia boa pinta (a julgar por um retrato dele), o Ricardo de Shakespeare é profundamente deformado fisicamente:

“De medo que eu ficasse
sob o seu regimento delicado,
peitou a natureza criminosa
para que me deixasse o braço seco
como galho sem seiva, e uma montanha
invejosa no dorso me pusesse,
de onde a deformidade zomba à grande
do meu corpo, estas pernas me deixasse
desiguais, afastando-me de toda
proporção, como ainda informe filho
de urso, que à mãe em nada se parece.”
(Ricardo, Ato III, Cena II)

Essa deformidade física será brilhantemente utilizada como alegoria para a deformação moral do personagem:

“Já que me fez o céu assim disforme,
torça-me o inferno o espírito também.”
(Ricardo, Ato V, Cena VI)

E é assim que o próprio Ricardo justifica sua ambição desmedida e assassina:

“Ora, se a terra só me proporciona
a alegria do mando, do domínio,
de subjugar pessoas bem formadas,
seja o meu céu sonhar com a coroa.
Enquanto eu tiver vida, puro inferno
vai ser o mundo, a menos que a cabeça
firmada, assim, neste disforme corpo,
me circunde coroa gloriosa.”
(Ricardo, Ato III, Cena II)



Em resumo: Ricardo é mau, muito mau:

“Eu, que não tenho
piedade e desconheço o amor e o medo.”
(Ricardo, Ato V, Cena VI)

Mas não é um vilão bidimensional, incapaz de sentimentos mais puros. Seu lado mais bondoso aparece quando ele perde o irmão caçula (que portanto não representava um rival na disputa pela coroa):

“Eu, que nunca chorei, agora em lágrimas
me desfaço, por ver que, prematuro,
me corta o inverno as flores do futuro.”
(Ricardo, Ato II, Cena IV)

Já o irmão mais velho é alvo de sua inveja e malícia:

“Eduardo trata honrosamente todas
as mulheres. Pudesse ele esgotado
vir a ficar, medula, ossos e tudo,
para que de seus rins ramo auspicioso
não nascesse, capaz de separar-me
da idade de ouro com que sempre eu sonho!”
(Ricardo, Ato III, Cena II)

A peça possui muitas outras passagens marcantes, de grande lirismo. Eis algumas:

“Deus clemente,
abre-me as largas portas de tua graça!
Escapa-se por estes ferimentos
minha alma, a procurar-te.”
(York, Ato I, Cena IV)

“Não é certo que o espinheiro
fornece sombra muito mais amena
ao pastor que contempla as inocentes
ovelhas, do que o fazem recamados
dosséis aos reis que de seus próprios súditos
a toda hora se temem?”
(Rei Henrique, Ato II, Cena V)

“Dor sobre dor, tristeza mais que humana!
Se eu pudesse, morrendo, por um término
a todas essas cenas de crueldade!”
(Rei Henrique, Ato II, Cena V)

 “Por que viver, para inundar o mundo
com palavras?”
(Ricardo, Ato V, Cena V)

A fala final é repleta de ironia, de tal modo como só havia visto em Nelson Rodrigues! Pois fica claro para o espectador que as maldades de Ricardo estão só começando... e então a sua próxima vítima declara:

“Adeus, tristeza! Adeus, melancolia!
Vai durar muito tempo esta alegria.”
(Rei Eduardo, Ato V, Cena VII)

E agora, enfim, vou ler de novo “Ricardo III”!

Viva Shakespeare!

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