segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A PAIXÃO SEGUNDO G.H. – Clarice Lispector



“– – – – – – estou procurando, estou procurando.”


Massa!!!

***

Resolvi ir fazendo alguns comentários à medida que for lendo, pois já de cara percebo que essas páginas de Clarice têm uma sustança!!!

Optei por não ler por enquanto à apresentação à obra assinada por Nádia Battela Gotlib. Geralmente prefiro ter um contato o mais “despido” possível com o autor.

Depois da apresentação, nos deparamos com a advertência:

“A POSSÍVEIS LEITORES

Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada.”


Vixe que já gamei já nas primeiras linhas! Sensação assim só experimentei ao ler Hermann Hesse ou Fernando Pessoa!

Li o que pode ser o primeiro capítulo. Caramba y carambita, Zagor!

Tive duas impressões fortes lendo esse primeiro capítulo.

1) Clarice Lispector é a Experiência!!!

O filme “A Experiência” fala de uma linda mulher cujo dna é metade humano e metade alienígena.

Pois então. O “dna literário” de Clarice é metade brasileiro, metade estrangeiro! É uma fina iguaria intelectual ler o pensar nitidamente europeu, tal como o de um Aldous Huxley (o mais próximo que encontrei), traduzido não, transmutado em português!!! Uau!!!!

2) Clarice Lispector é Anima Literatus!!!!

As mulheres, de modo geral, possuem habilidade muito maior que os homens para argumentar e defender pontos de vista. Eu mesmo, ao longo do tempo adquiri a sabedoria de jamais tentar ganhar uma discussão com uma mulher.

Pois então. Clarice é a Língua Feminina Suprema. Tremo só de pensar no que vem por aí...

(e ainda estamos no capítulo 1!!!!)


  
ANTES DE FALAR DA BARATA...

...devo confessar que sentia uma secreta aversão por Clarice Lispector.

Não era propriamente um preconceito, pois tentei ler “Perto do Coração Selvagem” durante a adolescência. Parei em uma página menor que a minha idade. Não era a Hora da Estrela de Clarice brilhar em minha vida: eu ainda não estava com a “alma formada”.

Não era machismo, tampouco. (Gosto de investigar a fundo tudo o que me incomoda, pois invariavelmente descubro aprendizados preciosos). Não era uma birra em admitir uma mulher no mais alto panteão literário. Pois já me rendi grato e submisso à potestade feminina chamada Virginia Woolf (só para citar um exemplo).

De onde vinha, então, essa hesitação em ler Clarice?

Graças ao carinho da amiga Nora, fui contemplado por essa magnífica experiência que há tanto tempo esperava por mim!

E finalmente encontro o motivo para minha secreta resistência, resposta docemente soprada pela própria Clarice!

Clarice Lispector tem frases fulminantes. Esse é o problema. Suas frases são como lâminas cortantes, que devem ser manuseadas com cuidado. Só deveria citar Clarice quem sabe que está empunhando uma espada afiada! Pois é grande o perigo de se cortar ou a outrem.

Por exemplo, sua frase mais famosa:

“Não se preocupe em ‘entender’. Viver ultrapassa todo entendimento.”

É visceralmente verdadeira! Mas há que se conciliá-la sempre com:

“Conhece-te a ti mesmo.”

Pois a prosa de Clarice é um mergulho no útero da alma no esforço de entender! Não pode jamais ser usada para justificar a obstinada ignorância ou a estupidez orgulhosa de não saber.

O que Clarice critica aqui é o mito da infalibilidade da razão humana. A razão é um mero instrumento da alma, que como todo instrumento possui suas limitações.

A alma, sim. É disto o que trata a literatura de Clarice.


BRINCANDO DE SAMURAI

“A vida é tão contínua que nós a dividimos em etapas, e a uma delas chamamos de morte.”

“Mas que abismo entre a palavra e o que ela tentava, que abismo entre a palavra amor e o amor que não tem sequer sentido humano – porque – porque amor é a matéria viva.”

“De morrer, sim, eu sabia, pois morrer era o futuro e é imaginável, e de imaginar eu sempre tivera tempo. Mas o instante, o instante este – a atualidade – isto não é imaginável, entre a atualidade e eu não há intervalo: é agora, em mim.”


O que tenho a dizer sobre a barata...
O encontro de G.H. com a barata é uma profunda experiência xamânica. A faxina que ela faz é em sua própria psique, vasculhando no fundo de sua alma, encarando o proibido, o escondido, o inimaginável, almejando olhar nos olhos da Sombra para abrir os portões do inconsciente.

Fiquei absolutamente eletrizado! Só me senti assim ao ler textos da mais alta espiritualidade.

*** 

“Mas também sabia que a ignorância da lei do irredutível não me escusava. Eu não poderia mais me escusar alegando que não conhecia a lei – pois conhecer-se e conhecer o mundo é a lei que, mesmo inalcançável, não pode ser infringida, e ninguém pode escusar-se dizendo que não a conhece.”

***



Quero comentar esse trecho

“Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.”

UAU!!!

Como em outras passagens do livro, senti aqui os ecos da mais profunda filosofia, a tal ponto que se mistura com a mais alta espiritualidade!

Nesse trecho em particular, senti os ecos de Nietzsche sintonizado com Parmênides, no ponto em que ambos praticamente recitam os Vedas!!!

Não é à toa que Parmênides é um de meus filósofos preferidos. Tudo o que havia para ser dito, ele resumiu em uma simples frase: “o que é, é, o que não é, não é”. Só o que existe pode ser. O que não é não pode existir. Não pode existir, por exemplo, o vazio que separa dois seres. Entre dois seres, sempre há um terceiro ser. Donde se conclui inevitavelmente que não existem seres separados, mas somente um Ser!

(Nietzsche entra na história porque foi graças à interpretação dele sobre os pré-socráticos que pude enxergar e amar Parmênides!)



“Não, em tudo isso eu não estivera enlouquecida ou fora de mim. Tratava-se apenas de uma meditação visual. O perigo de meditar é o de sem querer começar a pensar, e pensar já não é meditar, pensar guia para um objetivo. O menos perigoso é, na meditação, ‘ver’, o que prescinde de palavras de pensamento.”

A impressão que tenho é que Clarice descobriu a localização exata da Cidade Perdida, não porque seguiu algum dos velhos e confiáveis mapas, mas porque desbravou selvas e desertos até lá chegar, por suas próprias pernas e esforços.

Existem grandes escritores que o são por dominar a arte de dizer belamente as coisas. Outros, como Clarice, Hermann, Fernando, Carlos e mais alguns poucos iluminados, escrevem belamente porque contemplam de olhos bem abertos a Beleza. A diferença é sutil, porém fundamental.




A NAMORADA DE FRANZ

Enxergar a barata
em si mesmo
e compor um belo poema:

isso faz de você um Kafka.

Enxergar na barata
um portal
para o Si mesmo:

é o que transforma em Clarice.



ALTA BRUXARIA

“O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte – é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo.”

O maior escritor brasileiro não é homem nem nasceu no Brasil!!!

Viva a Mulher Clarice!!!



SPOILER??? O NOME DO ASSASSINO É...

Se esse fosse um livro policial, creio que o trecho abaixo corresponderia à cena da revelação, quando Hercule Poirot reúne todos na biblioteca e explica tintim por tintim quem, quando, como, onde e porque.

Não sei se pode ser considerado spoiler em um livro como esse, mas acho preferível o excesso que a omissão. Leia o trecho abaixo apenas se já leu o livro ou se não pretende lê-lo tão cedo (talvez mude de ideia)...

“Não é pra nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. A flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. A Via-Láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele extraímos. (Não sei o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o que fatalmente nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (A nostalgia não é do Deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível – minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.)
Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos.
Ele deixa. (...) Ele, por exemplo, Ele nos usa totalmente porque não há nada em cada um de nós que Ele, cuja necessidade é absolutamente infinita, não precise. Ele nos usa, e não impede que a gente faça uso Dele. (...)
Nós somos muito atrasados, e não temos ideia de como aproveitar Deus numa intertroca – como se ainda não tivéssemos descoberto que o leite se bebe. Daí a alguns séculos ou daí a alguns minutos talvez digamos espantados: e dizer que Deus sempre esteve! (...)
O leite da vaca, nós o bebemos. E se a vaca não deixa, usamos de violência. (Na vida e na morte tudo é lícito, viver é sempre questão de vida-e-morte.) Com Deus a gente também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo, quando precisa mais especialmente de um de nós, Ele nos escolhe e nos violenta.”



E O MARAVILHAMENTO NÃO PARA!!!

“- Aguenta eu te dizer que Deus não é bonito. E isto porque Ele não é nem um resultado nem uma conclusão, e tudo o que a gente acha bonito é às vezes apenas porque já está concluído. Mas o que hoje é feio será daqui a séculos visto como beleza, porque terá completado um de seus movimentos.
(...) O Deus é maior que a bondade com a sua beleza.
Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza. Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem.”


“Eu sabia que o erro básico de viver era ter nojo de uma barata.”

Recebi essas palavras com a gratidão de quem recebe um ensinamento precioso, vital até. Como alguém que se debate no oceano e de repente aparece alguém não com uma bóia salva-vidas, mas com uma palavra que ensina a nadar.

Agradeço pela Clarice em mim, que enxergava e sabia disso tudo antes, e que agora recebe nessas palavras uma confirmação sagrada até, de tão intensa.

“A Paixão Segundo G. H.” é com certeza um dos melhores livros que li na vida.

Minha queridíssima amiga Nora, que me emprestou esse maravilhoso Portal para o Eu, disse que era para eu escrever algumas palavras em um canto do livro. Só pude fazer esse comentário:

ATENÇÃO:
ESTE LIVRO AUMENTA A ALMA, QUE NUNCA MAIS VOLTARÁ AO TAMANHO ORIGINAL. LEIA POR SUA CONTA E RISCO.



***///***
Aproveito para convidar você a conhecer o livro O SINCRONICÍDIO:

Booktrailler:
http://youtu.be/Umq25bFP1HI

Blog:
http://sincronicidio.blogspot.com/
 
LEIA AGORA (porque não existe outro momento):



Um comentário:

  1. Fabinho!
    Clarice é fascinante.
    É preciso mesmo ter aparato psicológico para lê-la...
    cheirinhos
    Rudy

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